* Adoniran Lemos Almeida Filho
Na última semana fomos brindados com a lamentável cena de um Desembargador humilhando um fiscal que o autuava legitimamente por estar descumprindo singela regra de proteção sanitária imposta a todos os cidadãos. A cena patética culminou com a “otoridade” rasgando o auto de infração e dando o famoso CARTEIRAÇO, resquício de um período monárquico em que algumas (poucas) pessoas eram consideradas superiores e melhores do que as (muitas) outras, simplesmente por descenderem de uma linhagem de sangue azul. O que me faz lembrar a lição de um professor que dizia que a melhor resposta para o “quem você pensa que é?” sempre é dizer, apenas, “sou um cidadão brasileiro”. Ou, como fez Mário Sérgio Cortella quando lhe perguntaram se ele “sabia com quem estava falando?”, responder: “você tem tempo?”
Não entendeu? Então, assista ao vídeo onde ele explica que cada um de nós é uma dentre bilhões de pessoas; que, por sua vez, é uma dentre bilhões de espécies; que habita um dentre bilhões de planetas; que orbita uma dentre bilhões de estrelas; em uma dentre bilhões de galáxias; em um dos universos possíveis e imagináveis. Pelo menos a risada é garantida.
Resquícios do espírito monárquico, caracterizado pelo poder absoluto e irrestrito do Rei, que se transmitia eternamente apenas de pai para filho, sem qualquer consideração sobre a capacidade ou a integridade do sucessor. Apenas por ser da mesma linhagem superior. Aconteça o que acontecer. Faça o que fizer. Diga o que disser.
Daí, o salto evolutivo gerado pela ideia da REPÚBLICA, onde não apenas o exercício do poder político estaria ao alcance de todos, mas, também, o acesso aos cargos públicos. Em suma, substituiu-se a ideia (monárquica) de que o poder emana de Deus, em favor de poucos; para a ideia (republicana) de que o poder emana do povo, em favor de todos, ainda que nem sempre de forma igualitária, na medida em que as desigualdades fáticas acabam inevitavelmente levando à consequência de que esse acesso é mais difícil para alguns do que para outros (“a igualdade mais traduz um anseio do homem que uma realidade do mundo” – Paulo Brossard de Souza Pinto). Mas, ainda assim, com todas as dificuldades, na República esse acesso é universal.
Eu mesmo tive a “sorte” de ser aprovado no extenuante concurso público de provas e títulos para o ingresso na carreira do Ministério Público do RS, um dos mais concorridos e difíceis do país. Depois de aprovado eu prestei o juramento e, em 2004, assumi como Promotor de Justiça. Algo impensável em uma Monarquia, onde certamente algum amigo do Rei seria nomeado o Marquês das Cacimbinhas e passaria a coletar os impostos da Coroa (óbvio, afinal existem apenas duas coisas certas na vida: a morte e os impostos) e a manter a paz, dispondo para tanto de amplo poder sobre a vida e a morte dos seus “leais” súditos. O engraçado é que eu estou tentando lembrar (e não consigo) de alguém que nos últimos 16 anos tenha me perguntado sobre como foi ser testado de forma exaustiva durante o concurso, o qual exige níveis extremos de conhecimento teórico, capacidade emocional e resiliência, porém recordo dos vários amigos que já me perguntaram “e aí, quantos carteiraços já desse?” E antes que eu pudesse explicar que se fosse autuado eu preferiria me identificar apenas como MAIS UM CIDADÃO BRASILEIRO do que passar a vergonha de ser reconhecido como Promotor, já vinha o amigo dizendo: “Ahhhhh, porque se fosse comigo…”, deixando, então, a imaginação correr solta com exemplos de fazer corar o nosso simpático Desembargador-sem-máscara…
O que não deixa de ser curioso, na medida em que essa cultura do carteiraço é a prova de que o brasileiro saiu da Monarquia, mas a Monarquia ainda não saiu por completo do brasileiro. E o mais contrastante é que o mesmo cidadão que reclama, com justa razão, do carteiraço (seja do Desembargador em SP; do “Engenheiro formado, melhor que você” no RJ; ou do dono do supermercado que chama o amigo Secretário para evitar ser autuado pela venda de comida imprópria) é o mesmo que, nos últimos 20 anos do cenário da polarizada vida política brasileira, tem preferido endeusar os “novos ungidos de sangue azul”, infalíveis, qualquer que seja a cor da camisa. E que, assim como os monarcas de antigamente, parecem responder apenas a Deus. Espécies de divindades mitológicas, que estão acima do bem e do mal, e que não podem ser criticadas. Aconteça o que acontecer. Façam o que fizerem. Digam o que disserem.
Qual a minha sugestão? Simples, DESCONFIE. Desconfie do pescador que pesca todos os peixes; do jogador que marca todos os gols; do namorado que beija todas as bocas. E, principalmente, desconfie de quem não erra. Na civilização ocidental moderna a única pessoa infalível é o Papa. E, ainda assim, por dogma religioso. Dentro do espírito republicano o erro é inevitável e, por assim dizer, esperado. Todos vão errar. Alguns por excesso de vontade; uns por inexperiência; outros por má-fé. O nosso papel como cidadãos é fiscalizar a quantidade e a qualidade desses erros.
Por fim, mas não menos importante, desconfie de quem PROMETE DEMAIS.
Afinal, “o fato de que muitos políticos de sucesso são mentirosos, não é exclusivamente reflexo da classe política, é também um reflexo do eleitorado. Quando as pessoas querem o impossível somente os mentirosos podem satisfazê-las”
(Thomas Sowell).
Boa semana e até a próxima!!!
* Promotor Público de Pinheiro Machado