CONSCIÊNCIA NEGRA

Dos julgamentos e ações racistas à defensora da cultura afro

A história da professora Adriana Mendes na luta contra o preconceito racial

Na última quarta-feira (20), Dia Nacional do Zumbi e da Consciência Negra, pela primeira vez no Brasil foi feriado. A data já era celebrada no país, mas se tornou feriado em dezembro de 2023, após a sanção do presidente Lula. Importante lembrar que a data foi idealizada em 1971 pelo Grupo Palmares, formado por estudantes negros no Rio Grande do Sul e em 2003 o Dia Nacional foi instituído, tornando também obrigatório seu ensinamento nas escolas.

O feriado foi motivo de comemoração para a professora concursada na rede municipal de Hulha Negra, Adriana Gularte Mendes, 57 anos, graduada em artes plásticas e visuais e pós-graduada na educação inclusiva. Em entrevista ao Tribuna do Pampa, Adriana disse que a data representa pra ela, como mulher negra, reflexões, ganhos e valorização. “Significa que tudo que vivi, vivo e ainda vou viver, está valorizado. Ser negra, hoje, é uma valorização, porque a mulher consegue status, ela tem as suas valorizações na medida que ela tem o seu conhecimento, ela aprimora, ela vai atrás, ela é uma guerreira. Quem já sofreu muita discriminação diante de toda uma vida e saber que hoje nós temos um feriado em prol da reflexão, é uma evolução. Hoje sou liberta, luto pelos meus ideais, mas minha mãe enfrentou mais problemas e minha avó mais ainda. Minha bisavó era escrava, veio da Bahia. Então é muita diferença entre essas mulheres, então é um ganho, é saber que vamos conseguir mais e ser valorizadas. Tenho muito a comemorar”, afirmou ela ao TP.

 

MENSAGEM

Sobre quem ainda tem preconceito racial e olha de forma diferente para a pessoa negra em razão da cor da pele, Adriana diz que é necessário a pessoa se atualizar, pois o mundo gira. “Ontem fomos escravos, hoje nós não somos mais. O mundo evolui. As pessoas têm novos conhecimentos. Não fechar o pensamento para trás em saber que a cultura negra é aquela do tempo do escravo. A cultura negra é agora, é nós. Fomos escravos, hoje nós somos identidade. Então, quem ainda tem esse pensamento para o racismo, simplesmente está se fechando para si mesmo, não está abrindo os horizontes. A aceitação é nossa e é de todos. Nós, negros, estamos conseguindo se expandir, sendo valorizados em profissões, somos os afros descendentes do futuro e para o futuro”, expôs a professora, acrescentando que “nós, afrodescendentes, devemos ter amor próprio por nós mesmos e nos valorizar cada vez mais, em todos os sentidos, em todas as épocas, em todos os valores para nós conseguirmos ainda mais o nosso crescimento e ainda crescer juntos na sociedade em que vivemos.”

O preconceito pela cor da pele na escola, no trabalho e com a família

Adriana junto ao esposo e os dois filhos Foto: Divulgação TP

Adriana Mendes, por questões pessoais do pai com a bebida e por viver em outra época, entrou apenas com 11 anos na escola. Ela contou a reportagem do TP que desde criança vivencia manifestos de racismo, situações jamais esquecidas por ela. “Eu tinha colegas pobres como eu e outras com muitos recursos, como filhas de sargentos. Vivi o racismo pela primeira vez quando cheguei na casa de uma colega com uma amiga também negra e ao chegarmos na porta da frente a pessoa disse que a gente passasse pela porta dos fundos, pois certamente éramos filhas de empregados. Ficamos chocadas na época eu com 11 anos e vimos que duas meninas brancas passaram pela frente, foi quando nos demos conta que não passamos porque nós éramos e somos negras”, contou.

Uma segunda situação relatada ao jornal por Adriana é de quando ela tinha 17 anos e tentou um emprego como datilógrafa. “Eu tinha necessidade de trabalhar e eu fiz um curso de datilografia a mando do meu pai para ajudar ele. Fiz o curso, na época era o auge, e o maior datilógrafo seria empregado. Me formei com 98% de frequência e fui procurar serviço. Em um teste, fui arrumadinha e bati corretamente uma ata que foi pedido. Lembro de duas meninas brancas que batiam tecla, uma foi desclassificada, mas ao ficar só eu negra e uma menina branca, fizemos outro teste, bati corretamente, mas não consegui a vaga, disseram que eu não tinha experiência, mas como teria no primeiro emprego? A outra dava para contar as batidas nas teclas. Fiquei sem propriedade nenhuma, nem consegui mais datilografar. Hoje vejo que aquilo também foi um processo de racismo contra mim”.

 

O CASAMENTO

Aos 20 anos, Adriana conheceu o atual esposo e com quem está há 35 anos, Wolme Mendes Nobrega, homem branco, agora com 54 anos. Segundo a professora, foram diversas lutas e momentos racistas vivenciados pelo casal, visto as pessoas a olharem com desconfiança e a acusarem de ser racista pela escolha do namorado branco. “Pessoas negras me chamavam de racista, mas não podia mandar nos sentimentos. No início tínhamos o pensamento que não podíamos nos conhecer melhor, mas o amor foi vencendo. Ele era branco e sofria racismo junto comigo, mas namoramos e nos assumimos, ele assumiu toda minha família negra e eu assumi a dele branca”.

Adriana ainda lembra que aos olhos da sociedade,em 1992, ela e Wolme não estavam incluídos e que as pessoas não aceitavam de fato. “O sentimento é outra coisa, mas a sociedade é pior, ela machuca. Não tínhamos condições, às vezes, nem de sair de mãos dadas, as pessoas paravam pra nos olhar como se a gente fosse coisas do outro mundo. A gente não combinava na sociedade. Uma pessoa negra com uma pessoa branca,uma pessoa de cabelo crespo encaracolado com a pessoa de cabelo liso. Só aí eu vivenciei o verdadeiro racismo da sociedade e de outras pessoas que também evidenciavam o racismo”.

 

RACISMO COM OS FILHOS

Do casamento com Wolme nasceram Wolme Filho, hoje com 30 anos, e Emanoel Mendes Nobrega com 29. Entre situações vivenciadas por Adriana relacionadas ao racismo ao longo da vida, ela conta uma relacionada a um dos filhos, onde a confundiram com babá do menino em razão da diferença de cor em 1994.  “Tenho dois filhos, afrodescendentes por ter uma mãe negra e um pai branco. Um é negro e o outro é branco, apesar de atualmente não haver tanta diferença na cor deles, mais quando pequenos. Um dia estava esperando atendimento médico embalando meu filho branco que estava doente, muita febre, sentada entre duas mães brancas. Foi quando uma me olhou e disse, que linda essa criança, bem branquinha, há quanto tempo tu é babá dele? Naquele momento senti uma sensação tão inferior, perdi o chão, mas ao mesmo tempo criei coragem e ganhei meu chão de novo, respondendo: ‘desde que nasceu, ele é meu filho, nasceu de mim’. A mulher ficou sem graça e na hora pensei: ‘Meu Pai do Céu, olha que maior provade preconceito racial”.

Outra situação relatada por Adriana foi de preconceito vivido pelos próprios filhos na escola. “Eles me contavam tudo que acontecia. Um dia, o filho branco chegou e me disse que tinha ficado possuído porque haviam batido na porta dito que o irmão de cor dele queria falar com ele. Ele me contou ter ficado muito bravo e eu disse que não ficasse, que dissesse que não era irmão de cor, que era irmão, que tua mãe era negra e teu pai branco. Naquela época não tinha a palavra afrodescendência, né, aí os meus guris começaram a se defender, dizendo que eram assim”.

O trabalho nas escolas e a exposição

Em Hulha Negra, Adriana Mendes é destacada pelo trabalho realizado sobre a cultura afro com seus alunos. Solicitada a falar sobre esse trabalho ela lembra que são realizadas pinturas, desenhos e exposições através da história e buscando a reflexão. “É um legado, eu faço os alunos terem a consciência que o negro é uma pessoa de valor, que ele não está na história para ser desvalorizado, que ele está na história para somar e que tudo que tem na cultura, tudo que tem no Brasil, tem simplesmente ou maravilhosamente o legado da África, ou seja, nós estamos no Brasil e tudo tem uma pontinha da África, tem uma pontinha do negro, seja na roupa, na dança, na história. Faço os alunos se identificarem, não simplesmente no ato de valorizar a cultura. Se falamos em comida, a cultura negra está; se fala da dança, a cultura negra está. Fala da moda, a cultura negra está. Se a cultura negra não está em determinada cultura, faço eles agregarem. Assim como trabalho para que entendam sobre religião, que é algo muito difícil. Mostro o legado da África, que a religião é respeitosa lá pra eles, que cada um acredita em uma crença e todo mundo tem sua religião. Tudo é feito de maneira lúdica e na minha sala de aula todo mundo respeita a identidade, a diversidade, tanto a de cor como de sexualidade e também na diversidade de religião. A minha aula é completamente diversificada e meus alunos tem plenas condições de fazer Enem com esse tema”, explicou a professora.

EXPOSIÇÕES

 

Professora tem levado a cultura afro a centenas
de alunos Foto: Divulgação TP

Adriana também relatou realizar exposições sobre a cultura Afro em outras escolas e espaços que tenham interesse em trabalhar o tema em Bagé. “É a primeira mostra do tema, chamada Cores, Estampas e Silhuetas na Cultura Afro, onde fiz toda sozinha. Depois fui contemplada com o incentivo da Lei Paulo Gustavo, que me deu permissão para fazer mais dez telas, totalizando 25 telas expostas. Neste momento que se fala muito da cultura afro e consciência negra, levo minha experiência e conhecimento da tela para alunos de toda região. Estou adorando fazer esse trabalho, levar assuntos para debate”, finalizou.

ORIGINALMENTE ESTE CONTEÚDO FOI PUBLICADO NO JORNAL IMPRESSO*

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