Livros que marcam…

Em uma atualidade marcada por uma contundente “dinâmica do paradoxo”, onde estamos cercados de milhares de pessoas e, ao mesmo tempo, de nenhuma, nunca lemos tanto na história e, ao mesmo tempo, tão pouco, mantemos relações diversas, poucas delas substanciais, a metáfora do porco espinho, de Schopenhauer, talvez nunca tenha feito tanto sentido. É preciso lidar com isso. E a leitura pode ser um bom remédio. Ler é um ato solitário, mas reconfortante, não raro. Há um encontro de solidões, a do autor, que escreveu, e a do leitor, que contempla a escrita. Observado, então, o título da coluna, falarei de umlivro que, de alguma forma, marcou a minha caminhada. O autor? David Coimbra, brilhante cronista gaúcho que, tristemente, acabou falecendo, na última sexta-feira, 27 de maio, em decorrência de um câncer contra o qual lutava há anos. Pois bem.
Era junho de 1988. Eu nasceria em 07 de julho. A Constituição Federal em 05 de outubro. Pedro Simon era Governador do Estado do RS. E o inverno daquele ano era rigoroso, glacial. Um homicídio de repercussão amazônica sacudiria a sociedade rio-grandense. A vítima era José Antônio Daudt, jornalista demasiado popular e Deputado Estadual. Dois tiros disparados de uma escopeta calibre 12 não o erraram. Enquanto o polêmico parlamentar agonizava em uma mesa de operação na madrugada de 04 para 05 do mês de Juno, o Deus romano da guerra, já no saguão do hospital surgiria o nome do principal suspeito do crime: Antônio Dexheimer, também Deputado Estadual. Ambos eram do PMDB, o partido governista. Dexheimer seria indiciado, denunciado, processado e julgado como tendo sido o autor dos disparos que fulminaram o colega de Assembleia. Passados 809 dias, em uma sessão de julgamento transmitida ao vivo por diversos veículos de rádio e de televisão, o deputado seria absolvido.
O livro “800 noites de junho”, escrito por David em idos de 1993, tratou de desvendar o lapso temporal entre a data do crime e o efetivo julgamento, sob a perspectiva daquele que seria o único acusado por ele, Dexheimer. Adquiri o livro em 2010, quando ainda estava nos bancos da graduação em Direito em Bagé. Foi um achado, o que não havia percebido na época. Livro raro. Hoje é quase impossível encontrá-lo à venda. Reli há poucos dias numa assentada. O cotidiano daqueles tempos saltou das páginas de jornais e das folhas de um processo judicial, que já nasceu histórico, pela pena de um talentoso escritor. David Coimbra soube reconstruir com excelência o turbulento período que marcou o caso Daudt. Cronistas, nas palavras de outro destacado escritor do RS, Juremir Machado, são seres esquisitos, que andam por aí capturando certos instantes da vida para, de algum modo, imortalizá-los. Foi o caso.
Confesso que nas vezes que li “800 noites de junho” – foram três, que eu lembre – sempre o fiz com certa angústia. A razão da angústia seria absolutamente injustificável, afinal, o desfecho é de todos conhecido: a absolvição do réu e, até hoje, um homicídio sem autor. Por que, então, a inquietação? Seria o meu instinto de defesa? O meu faro contra majoritário? Ou fato de o enredo conter aquilo que mais interfere na natureza humana (sangue, sexo e poder, nas palavras do autor)? Um pouco de tudo, quiçá. Mas… foi ele? Se não, quem foi? Eis a raiz. A pergunta não é pouca, afinal, tal como alma penada, passou anos a fio arrastando correntes pelos corredores gélidos do Judiciário gaúcho, até que, apenas em 2008, a purga se consumasse, não por intervenções metafísicas, mas pela prescrição. Convenci-me, assim como Juremir, de que não, de que não teria sido ele. Mas, mais do que isso, de que a investigação foi falha, algo magistralmente demonstrado porLia Pires, advogado do réu. Sobre quem teria sido, apenas algumas hipóteses. Talvez surja algum nome em algum leito de morte redentor por aí. Por enquanto, ninguém.
Agora, não se diga que ninguém foi condenado no caso Daudt. David Coimbra foi condenado a ressarcir um ex-assessor de Daudt por danos morais, bem como à prestação de serviços à comunidade. O único condenado no caso Daudt foi aquele que melhor escreveu sobre o pandemônio no qual uma modorrenta noite de inverno acabou transformando o RS, fato que sempre encarou com bom humor. Apupos à parte, o livro materializou o resultado da perfeita união entre intelecto, pesquisa, papel e tinta. E, no fim das contas, dentre dois solitários, autor e leitor, poderíamos incluir mais um, que possivelmente tenha sido deixado de lado no curso do turbilhão que foi o caso: a verdade.

* Originalmente este conteúdo foi publicado no jornal impresso

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