A coluna de hoje é sobre um livro cujo tema é a “literatura ditatorial”. Ou seja, um livro que aborda obras escritas por ditadores ou atribuídas a eles. A leitura, digo, é agradável. Inclusive pelo caráter até mesmo caricato que o autor atribui às obras referidas e aos autores ou pretensos autores. O mérito, por sua vez, é a abordagem da mente autoritária, ditatorial ou totalitarista por meio de uma análise minuciosa de sua literatura. Trata-se, enfim, de “um estudo fascinante sobre os livros de ditadores grandes e pequenos”.
Com efeito, é ao livro “A biblioteca dos ditadores: sobre déspotas, os livros que eles escreveram e outras catástrofes literárias”, de autoria do jornalista Daniel Kalder, que me refiro. Em seu “A biblioteca dos ditadores”, apresentando um ditador por capítulo, de Lênin e Stalin a Mussolini e Hitler, e muitos outros além, Kalder escreve uma narrativa envolvente que vai manter os leitores atentos, apesar dos protagonistas. Para o New York Times, o livro, então, é um cauteloso conto sobre a capacidade das sociedades de serem enganadas por demagogos e suas besteiras.
Ditadores escrevem livros desde o Império Romano. No século XX, no entanto, déspotas desfrutaram de tiragens sem precedentes para públicos cativos. Os titãs do gênero, diz o autor, produziram obras teóricas, manifestos espirituais, poesias, memórias e até mesmo a ocasional obra de ficção, e estabeleceram uma tradição literária de gosto duvidoso que persiste até hoje.
“Embora nada seja mais fácil de denunciar do que o malfeitor, nada é mais difícil do que entendê-lo”
Como a produção da literatura se tornou central para o funcionamento dos regimes? O que esses livros revelam sobre a alma ditatorial? E como os livros e a alfabetização, quase sempre vistos como inerentemente positivos, podem causar tamanho e duradouro dano? São essas e outras perguntas que o autor pretende responder, trazendo, para tanto, as obras das figuras mais notáveis do século passado na “arte” de governar ditatorialmente. Suas palavras causaram estragos. E a convicção em suas ideias e na relevância dos seus pensamentos não tolerava oposição. Talvez não seja surpreendente que muitos ditadores começaram as suas carreiras como escritores.
Um detalhe ressaltado pelo autor é demasiado relevante: a maioria destes livros não é lido hoje em dia ou são tratados como piadas, a apesar do fato de seus autores, certa vez, possuírem tiragens recordes, leitores cativos e a aclamação de intelectuais que deveriam ter sido mais sensatos. Mas, como tiveram tanto sucesso no passado? E mais: será que isso não pode se repetir? É preciso saber do passado, pois. Até mesmo para que sirva de alerta. E, diga-se, para que não sigam sendo propagadas ideias já vencidas no passado, ou, uma vez testadas, demonstradas como fracassadas.
Conforme Dostoiévski escreveu, embora nada seja mais fácil de denunciar do que o malfeitor, “nada é mais difícil do que entendê-lo”. Está aí, consequentemente, uma boa dica de leitura para o alcance desse entendimento.
ORIGINALMENTE ESTE CONTEÚDO FOI PUBLICADO NO JORNAL IMPRESSO