O constitucionalismo surgiu e se consolidou com o fim de limitar o poder do Estado na relação mantida com os indivíduos. Sobreveio, assim, uma construção que convencionamos chamar de “direitos individuais”, assentada justamente como verdadeiros trunfos do indivíduo em face da prerrogativa estatal. Agora, tal e qual a pergunta feita por Giovanni de Gregorio, como manter esse casamento entre constitucionalismo e Estado, entre constitucionalismo e indivíduo, em uma época em que convivemos com grandes plataformas digitais que desempenham cada vez mais um papel crítico na intersecção entre autoridade pública e ordem privada? Eis o desafio. E ele não é pequeno.
O problema é: o avanço do poder tecnológico sem uma regulação eficaz como contrapeso (limite de poder). Desde o final do século passado (décadas de 1980 e 1990) o encanto de acomodar as promessas das tecnologias digitais levou-nos a negligenciar ou a esquecer mesmo o papel do constitucionalismo na proteção dos direitos fundamentais e na limitação do surgimento e consolidação de “poderes irresponsáveis” (o termo é de Giovanni de Gregorio) que abusam dos preceitos constitucionais.
Criou-se, com isso, pode-se dizer que um limbo normativo, sustentado, de um lado, por uma reverência neoliberal desregulamentadora e, de outro, por um exacerbado otimismo tecnológico, atrelado às narrativas liberais em torno da chamada “governança da internet”.
Dito de outra forma, a alegria, talvez ingênua, de ver consolidada essa nova era tecnológica fez com que pouco ou quase nada se olhasse para o poder que essas plataformas digitais poderiam assumir no espaço das relações sociais. Já na esfera do poder público, isso também gerou um processo de submissão das funções públicas no ambiente digital a uma lógica de mercado, por delegação ou inércia. Todo esse estado de coisas, então, tem contribuído para a formação de “novos poderes fundadores”, que escapam à fiscalização pública, sendo que as ameaças às liberdades fundamentais, hoje em dia, não vêm mais apenas do poder público, mas de entes privados que governam espaços eminentemente privados, mas que, eis aí o detalhe, exercem, sem qualquer contrapeso, funções tradicionalmente públicas.
E vejam: essas plataformas digitais, chamadas de “big-techs”, são verdadeiras multinacionais, cada qual com um poderio econômico de proporções oceânicas. O valor de mercado delas, registre-se, é superior ao PIB de muitas Nações Mundo afora, inclusive –foi divulgada, em 2021, uma pesquisa que indicou que o faturamento delas correspondeu a 48,8% do PIB brasileiro.
O poder delas, portanto, com feições de monopólio, é gigante. E poder sem controle é sempre um perigo.
Discute-se, nesse caminho, no Congresso Nacional o Projeto de Lei n° 2630/2021, chamado popularmente de “PL das Fake News” E é do conhecimento de todos uma forte campanha desencadeada pelas plataformas, a qual, inclusive, chegou ao dizer, por uma delas, tratar-se, o PL, de uma grande ameaça à democracia ou de uma espécie de institucionalização da censura na rede mundial de computadores.
Mas não. Não se trata de minar a liberdade de expressão. Mas de regular a ação das plataformas, trazendo controles e medidas de transparência. Dentre essas medidas, eu cito: vedação de contas inautênticas ou não identificadas; restrição do número de contas por usuário; identificação do usuário por meio de documento oficial; proibição de uso de ‘bots’, ou seja, contas automatizadas geridas por robôs; limitação do alcance de mensagens muito compartilhadas; possibilidade de exclusão de conteúdo com teor de incitação à violência, exploração sexual infantil, violência contra a mulher, racismo, terrorismo e crimes contra o Estado Democrático de Direito (incitação a golpe de Estado). Dentre outras.
Indago, então: no que tais medidas legais fariam suplantar a liberdade de expressão ou a própria democracia brasileira? Eu realmente não consigo ver. Mas, o debate está posto. Que ele se dê, no entanto, com transparência e lealdade, além de respeitar a veracidade dos fatos. A ver, ao fim e ao cabo, os próximos capítulos…
ORIGINALMENTE ESTE CONTEÚDO FOI PUBLICADO NO JORNAL IMPRESSO*