EDUCAÇÃO

De Candiota à França: através do ensino público, enfim, doutora

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Michele ainda estudou onze meses na França Foto: Gislene Farion TP

“Não foi uma trajetória fácil”. Assim a candiotense Michele Ferreira Cougo descreveu os quase 13 anos de vida acadêmica. Aos 32 anos de idade, ela acabou de receber o título de doutora em Ciências pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e aceitou o convite do TP para conversar e, quem sabe, inspirar e encorajar alguns dos nossos leitores. Em tempos difíceis para a Educação, Michele veio deixar um recado e mostrar que, apesar do árduo caminho, é possível sim chegar lá. Embora tímida e de fala contida, ela trouxe consigo a firmeza em cada palavra escolhida para descrever os passos dados, as pesquisas realizadas e o caminho percorrido até aqui.

Em Candiota, conforme contou, estudou na Francisco Assis Rosa de Oliveira (Faro) e na Neli Betemps; passou por escolas públicas das cidades de Bagé e Pelotas e, em seguida, chegou à universidade, também através do ensino gratuito. Em 2010 concluiu a graduação em Oceanologia pela Universidade Federal do Rio Grande (Furg), foi aprovada para o mestrado na mesma instituição e ainda na Universidade Federal do Pará (UFPA) – onde morou, fez o doutorado e teve a oportunidade de estudar alguns meses na França. “A prova para a UFPA eu fiz na própria Furg e isso é o legal das universidades federais: que elas estão conectadas. É possível pedir para trazer as provas de pós-graduação e mestrado para que a gente possa fazer aqui mesmo”, disse ela.

Para ela, apesar de consciente dos privilégios de ter uma base familiar bem estruturada, foi o acesso ao ensino público que possibilitou a carreira de sucesso nas pesquisas. “Na Furg, por exemplo, a Oceanologia é o carro-chefe, então lá era o melhor lugar que eu poderia estar para começar nessa área. Sem contar que Rio Grande é logo ali. É possível crescermos a partir dos estudos em uma cidade pequena, em escola pública e também ficar aqui na região. Eu sei que eu sou filha de professor e já tenho essa base que me ajuda muito, eu reconheço isso, mas é importante que outros estudantes de escolas públicas saibam que é possível fazer o mesmo caminho que eu fiz”, destacou. Michele é filha dos professores Nazionélia Ferreira e Valmir Cougo.

Acompanhada da mãe, Nazionélia Ferreira, a doutora visitou a redação do Tribuna Foto: Gislene Farion TP

Conforme narrou, até conquistar o título de doutora, o caminho foi cercado por obstáculos. “Não posso negar que houve muitos momentos difíceis – psicológica e pessoalmente falando. Tive minhas paradas e recolhimentos, quando algumas vezes voltei para casa e pensei em desistir, mas também dei a volta por cima porque tinha uma pesquisa me esperando para ser concluída”. Michele lembrou ainda a luta de ser mulher e escolher uma área dominada por homens – como muitas ainda são atualmente.

Para o TP, a candiotense confessou que nem sempre foi uma aluna excelente e que a maturidade a fez enxergar a importância da dedicação com os estudos. “Eu fui adquirindo essa percepção do quanto era importante o que eu fazia ao longo do tempo. Até a graduação eu fui levando, mas durante o mestrado e o doutorado essa evolução acontece de forma incrível. A gente consegue se sentir parte fundamental dos avanços possíveis na área da nossa pesquisa”, comentou. Segundo ela, o caminho percorrido e as oportunidades abraçadas possibilitaram a criação de uma rede de contatos e de amigos que a fizeram crescer muito, como profissional e como ser humano.

EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL – Onze meses. Esse foi o período que a candiotense desenvolveu sua pesquisa na França. Conforme contou, a ida e a permanência só foram possíveis através de bolsa de estudos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Apesar de preencher os requisitos e garantir o benefício, não foi um período fácil. Antes mesmo de ir, Michele se pôs diante de mais um grande desafio: uma língua até então desconhecida.

“Eu fiz 15 aulas particulares com um dinheiro que eu consegui para aprender francês e dali eu estudei sozinha. De fevereiro a julho eu precisei adquirir um nível de compreensão e foi a partir disso que eu desenvolvi meu francês. Tive que apresentar o meu trabalho em uma língua diferente da minha assim que cheguei lá e ao longo do tempo eu consegui estabelecer uma comunicação de forma muito eficiente com as pessoas”, disse.
Para Michele, a experiência possibilitou estar em um patamar bastante favorável dentro da sua área. “Tive contato com um laboratório de excelência no ramo que eu trabalhava, também fui a palestras, reuniões e, realmente, foi um período muito bem aproveitado para a minha carreira – para me abrir muitas portas e fazer essa minha rede de contatos”.

Na foto, Michele e colegas em uma das saídas de campo para desenvolver a pesquisa Foto: Divulgação TP

A TESE – No doutorado, orientada pelo professor doutor Pedro Walfir Martins e Souza Filho, Michele se ateve às pesquisas sobre o potencial do sensoriamento remoto SAR no mapeamento, discriminação de gêneros e estudo da dinâmica de floresta de mangue na região Amazônica. “Tanto no mestrado quanto no doutorado eu trabalhei com o enfoque na imagem de satélite, com sensoriamento remoto. Dentro dessa temática, meu objeto de estudo são as florestas de mangue e todo o estudo gira em torno do carbono. A ideia é tentar medir quanto de carbono essas florestas capturam da atmosfera numa perspectiva de mudança climática”, explicou.

Segundo ela, existe uma tentativa global dos pesquisadores em tentar medir o quanto de biomassa esse ambiente tem em uma determinada área, justamente para perceber o quanto ele captura de carbono. Em seu estudo, ela analisa as relações que existem entre as imagens e o que consegue obter delas para fazer esse cálculo. “O trabalho é fundamental para compreender a importância desse ambiente. De uns tempos para cá se descobriu que é possível ganhar muito mais em termos financeiros se o deixar intacto. Ele vai, assim como todos os ambientes costeiros, valer muito mais se ninguém mexer nele – preservando, inclusive, as relações com a população local”, disse. Conforme adiantou sobre seu estudo, financeiramente é como se o Brasil tivesse mais dinheiro, em termos ambientais, do que outros países.

EDUCAÇÃO AMEAÇADA – Depois de contar sobre os quase sete anos de vida acadêmica, Michele falou sobre a atual realidade do país, da ciência e de como vê o futuro dos estudantes. Inevitavelmente, o bate-papo na redação do TP chegou ao anúncio do presidente Jair Bolsonaro (PSL) de cortar 30% das verbas na área da educação – atitude que vem gerando uma série de manifestações nas instituições, que provavelmente não conseguirão se manter por muito tempo.

Conforme destacou, na época do mestrado, ingressaram cerca de 30 alunos na Universidade Federal do Pará (UFPA) com bolsa de estudo para desenvolver as pesquisas. “Para mim, por exemplo, sem esse auxílio seria impossível sair daqui e me manter em uma capital como Belém. O custo de vida é alto e, normalmente, os professores já exigem dedicação exclusiva para os estudos porque a pesquisa requer muito tempo”, disse.
Com a redução do orçamento nas universidades, a destinação dos investimentos para as pesquisas deve cair de forma bastante impactante em todo o país. “Isso vai fazer com que só as pessoas que têm dinheiro consigam chegar lá. Realmente dá uma tristeza ver esses cortes e saber que outras pessoas podem não ter a mesma oportunidade de chegar aonde eu cheguei. De um jeito ou de outro tentam sempre afunilar – não pela competência, mas para deixar só a elite chegar ao topo. A dificuldade aparece para quem é mais humilde mesmo. Até o doutorado, depois do meu edital, já surgiram outros pré-requisitos que estão limitando muito a participação”.

Além disso, a doutora levantou outro ponto crucial no país onde vive. Para ela, de um modo geral, permanecer no Brasil é extremamente complicado diante da atual situação. “Além dos cortes, para mim, por exemplo, a oportunidade no Brasil está ficando cada vez mais escassa. Também estão mexendo na questão dos concursos públicos e na própria carreira pública, então vai ter um período que é o que a gente chama de “fuga de cérebro” – os pesquisadores vão começar a ir embora do Brasil por não ter investimento nos laboratórios para tocar pesquisas de ponta. Quem perde com isso é o próprio Brasil, porque aqui ainda acham que ciência não importa e não influencia na vida de ninguém, mas ainda vamos mudar isso”, lamentou. Segundo ela, é fundamental que as novas gerações entendam a gravidade da situação e compreendam desde já que é importante lutar para reverter o quadro.

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