SÉRIE ÁGUA – CONSUMO CONTROLADO

Ex-diretora do Daeb desafiou a lógica da época para instalar milhares de hidrômetros na maior cidade da região

Em entrevista ao TP, Esfanía Damboriarena, diretora do Daeb entre 2003 e 2009, afirma que há uma máxima que aquilo que não se controla, não se gerencia

Atualmente, Estefanía é concursada e atua como chefe adjunta de Administração na Embrapa Pecuária Sul Foto: Arquivo Pessoal/Especial TP

O TP inaugurou na última edição, uma série de reportagens jornalísticas que busca fortalecer o debate mais aprofundado sobre a gestão, captação, tratamento e distribuição de água na região. Os municípios de Candiota e Hulha Negra são os que mais sofrem com esta situação.

A ideia da série não é apontar culpados, mas sim trazer experiências e ideias para a melhoria.

Nesta edição, publicamos a entrevista com a ex-diretora do Departamento de Água, Arroios e Esgotos de Bagé (Daeb), Estefanía Damboriarena, que de maio de 2003 a maio de 2009, realizou uma verdadeira revolução na autarquia. Na época, durante os dois governos municipais do atual deputado estadual Luiz Fernando Mainardi (PT), Estefanía desafiou o pensamento dominante na maior cidade da região e com muita ousadia e certeza do que estava sendo feito, implantou o sistema de hidrometria em Bagé. O trabalho foi tão importante, que Mainardi a bancou como pré-candidata a prefeita nas prévias do partido na época.

A engenheira agrônoma de formação e mestre em Administração, atualmente é concursada como Analista de Negócios Tecnológicos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), está lotada na Embrapa Pecuária Sul, em Bagé, e exerce a função de chefe adjunta de Administração.

Veja à seguir, os principais trechos da entrevista:

Tribuna do Pampa – Como foi política e tecnicamente a decisão de implantar hidrômetros em Bagé durante tua gestão no Daeb?

Estefanía – Há uma máxima em administração de que o que não se controla não se gerencia. Hidrômetros são os instrumentos que permitem medir água. Água é um recurso finito, ainda mais em Bagé. Uma cidade que tem histórico de escassez, com sistemáticos racionamentos e não tinha um sistema de controle efetivo nem do consumo nem do volume tratado e distribuído era um contexto sem gestão. Essa foi à premissa. A chegada dos primeiros hidrômetros novos foi decorrente da adesão ao Programa de Modernização da Administração Tributária. Justificamos a relevância desses instrumentos como estratégia de gestão. Politicamente a resistência era derivada do desconhecimento e fui muito feliz de ter o Mainardi (Luiz Fernando) como prefeito na época. Ele me desafiou a demonstrar o sentido, a viabilidade e os resultados. Tenho convicção que a fórmula foi essa: vencer as resistências com demonstração de melhoria nos serviços, com transparência nos critérios de implantação da hidrometria, com comunicação permanente com a comunidade e com evidências dos resultados melhorando os serviços. Política pública deve ser feita com sentido/propósito e o nosso era enfrentar um problema que atingia sobremaneira os menos favorecidos (casas sem caixas de água, moradores de pontas de redes e mesmo com moradias sem serviço pela irregularidade fundiária), mas atingia a todos, pois o Daeb estava “quebrado”, não investia, nem qualificava os serviços.  Abastecimento e saneamento são componentes de saúde pública e indispensáveis ao desenvolvimento local. Profissionalizar o serviço foi outro requisito para ter resultados.

 

TP – Houve muita resistência da comunidade para implantar o sistema? Houve desgaste político na sua avaliação?

Estefanía – Sim, resistência houve, pois ninguém gosta de ser controlado. O hidrômetro controla o consumo, desestimula o desperdício e nem todo mundo gosta. Ainda mais quando ao final incide sobre os valores pagos. O desgaste político foi decorrente de não ser uma política de dar vantagem para ninguém, era antipático dizer que estávamos colocando instrumentos de controle em todos os imóveis, etc. A oposição teve prato cheio na política “barata” sem conteúdo construtivo. Teve até gente que dizia ao Mainardi que se não parássemos essa política de instalar hidrômetros, suspender o serviço de água aos inadimplentes (mais da metade da cidade não pagava), ele não seria reeleito. Eu mostrei para ele com números que as pessoas queriam melhorias e estávamos entregando isso. Eu brincava, a metade aplaude e a outra metade vaia. No fim mais de 63% dos eleitores concedeu a ele o segundo mandato. Não era só isso claro, foram muitas frentes de trabalho que fizeram esse resultado, mas sou convicta que os resultados do Daeb contribuíram e muito.

 

TP – Existe mesmo o dilema ‘coloco o hidrômetro para melhorar ou melhoro para hidrometrar’? É possível as duas coisas, uma depende da outra?

Estefanía – É imprescindível fazer tudo junto. Um sistema de abastecimento precisa de infraestrutura, para isso precisa de recursos financeiros para investir e para garantir a operação, precisa de pessoas qualificadas técnica, administrativa e operacionalmente falando. Ter tudo isso e não controlar, repito, não se gerencia. Por isso hidrômetros são imprescindíveis para fazer gestão de água, recurso escasso, finito e cujos serviços para captar, tratar e distribuir são muito caros.

TP – Como era a realidade do Daeb quando você assumiu e como ficou?

Estefanía – Foi emblemático assumir o Daeb. Eu resisti, era secretária do Planejamento num momento onde todos nossos projetos idealizados estavam em fase de execução. Houve uma ruptura política com o PDT na época. Hoje meu amigo Flávio Raposo, que foi diretor do Daeb antes que eu, me disse uma vez: ‘quisesse eu ter podido (política e tecnicamente falando) ter feito o que fizestes lá naquela época’. Acho que a situação estava muito difícil financeiramente, a inadimplência era gigante. O quadro profissional na época era quase todo de contratos emergenciais e cargos comissionados. Não havia memória técnica. Sinto dizer, mas acho que o Daeb estava bastante vulnerável como autarquia. Talvez pronto para justificar ser privatizado ou retornar a gestão da Corsan. Eu tenho para mim que foi um dos maiores desafios profissionais da minha trajetória. Tenho a convicção de que dei o meu melhor. Fizemos um trabalho fantástico de equipe. Todos que tinham censo público e profissionalismo foram mobilizados. Sai do Daeb com muitos resultados entregues e muitos em fases de execução. Poderia aqui descrever inúmeras realizações, mas talvez a mais significativa foi demonstrar que com gestão, com senso público, com muito compromisso pessoal como dirigente e de toda uma equipe mobilizada, é absolutamente viável manter esse serviço público com qualidade e atendendo efetivamente a comunidade.

 

TP – Sabemos que um sistema de água é algo complexo. Nos dê sua visão e experiência sobre como é possível melhorar o abastecimento e o desperdício de água potável?

Estefanía – Todo problema quanto mais complexo, mais se faz necessário integrar diversos conhecimentos. Não há solução padrão para todos os lugares, mas os princípios valem sempre se bem aplicados. Ter objetivos claros, metas devidamente mensuradas, busca de soluções técnicas adequadas a cada realidade, saber que todo serviço público tem custos e deve ter fontes de financiamento (seja para investir como para garantir a operação). Quando há a participação da comunidade no custeio deve ser tratado com rigor de critérios e transparência. Se os investimentos forem públicos deve haver transparência na tomada de decisão e acompanhamento da execução.

 

TP – Problemas complexos, soluções complexas…

Estefanía – Do meu ponto de vista não há problema sem solução. Não há nenhuma premissa que garanta que o privado é mais eficiente e eficaz que o público. Mas sim tenho a convicção que resolver problemas difíceis exige um pouco mais que o trivial. Tem que haver dedicação, mobilização de competências e ser muito criativo e articulado na busca dos meios necessários para fazer a solução acontecer. Muitas vezes é imprescindível perseverar, pois há problemas que perfazem muitos anos, passam por várias gestões e talvez isso explique um pouco as dificuldades de superar problemas complexos em nossas comunidades. O controle social precisa ser mais aprimorado como antídoto aos recuos e descontinuidades. É minha singela opinião!

ORIGINALMENTE ESTE CONTEÚDO FOI PUBLICADO NO JORNAL IMPRESSO*

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