O que os grandes livros ensinam sobre Justiça?

Vivemos no mundo das informações. Jamais a humanidade foi tão bem informada. Sabe-se imediatamente se um trem descarrilha em Jacarta, na Indonésia, ou se nasce um urso panda em algum rincão isolado da China. Porém, são informações, e informações se sobrepõem a todo momento – no dia seguinte, elas já terão pouca utilidade. Cultura é (bem) diferente. A cultura também engloba informações, porém, são aquelas que moldam a nossa civilização. E estas permanecem, vez que representam alicerces. Por que entendemos que algo é certo ou errado? Por que concordamos que algo é belo ou feio, bom ou mau? Ora, todos temos arraigados alguns princípios que nos foram entregues por aqueles que vieram antes de nós, que, por sua vez, receberam da geração anterior, e assim por diante. A própria linguagem é isso. Essa tradição é construída pela cultura. E onde se encontra essa cultura? Em primeiro lugar, nos livros. Os livros, desde que a humanidade aprendeu a escrever e a armazenar seus pensamentos, compõem a mais profícua fonte de cultura. E eles ensinam muito.
Em “O que os grandes livros ensinam sobre Justiça” (Nova Fronteira – RJ, 2019), José Roberto de Castro Neves organiza e apresenta coletânea que reúne textos elaborados por expoentes do universo jurídico brasileiro, que, a partir de livros marcantes no desenvolvimento da nossa civilização, apontam lições sobre a Justiça. Na obra coletiva, cuja introdução acima se encontra citada em trecho, promove-se uma jornada por alguns dos alicerces fundamentais de nossa história e cultura, como Dom Quixote, Grande Sertão: Veredas, O Alienista, Os Miseráveis, Antígona e Irmãos Karamazov, dentre muitos outros.
Nas “Otrasinquisiciones” Jorge Luis Borges escreveu que a história universal, quiçá, “es la historia de unas cuantas metáforas”. Pois muitos dos grandes livros da história trazem valiosas metáforas acerca do Direito e da Justiça. E muitas delas estão postas nesta grande obra contemporânea sobre a qual escrevo hoje. Trata-se, pois, da Literatura e do Direito andando de mãos dadas. Acredito, tal como Norman Mailer afirmou, que se perdermos o passado “perderemos muito mais do que jamais poderemos imaginar”. Como, então, um advogado, como eu, lê os clássicos? Certamente não descansando dos ensinamentos da Lei.
Assim, em “Aventuras de Pinóquio”, a arrogância, o narcisismo e o egoísmo no fazer das pessoas e das situações meros instrumentais para a realização dos próprios desejos em confronto com a existência de mínimas regras de convivência é uma tônica, o que denota a importância do Direito e dos seus instrumentos de coercibilidade. Em “Dom Quixote”, e é apenas uma das ideias, consignada está uma lição acerca da importância da imparcialidade judicial – “Quando acontecer de julgares algum pleito de algum inimigo teu, afasta da tua mente a ofensa”. Já em uma passagem de “Grande Sertão: Veredas”, o problema da ausência do Direito surge com muita concretude “O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias”. Ocorre que o Direito é a fórmula moderna encontrada para brecar a força (a força do Direito contra o direito da força, como disse Ruy Barbosa), sendo que onde a força – não apenas a bruta – impera, o Direito agoniza. De igual modo, em “O Conde de Monte Cristo”, notadamente no julgamento de Edmond, Manseau apresenta vigorosa defesa em prol da presunção de inocência. E diz mais, cujo alerta é temporalmente transcendental: “a Justiça e a vingança não se confundem”. Até mesmo questões envolvendo a interpretação jurídica podem ser extraídas, como em “O nome da Rosa”, de Umberto Eco, a partir de uma intersecção com “Romeu e Julieta” – “O que chamamos de rosa, sob outra denominação, teria outro perfume?”. E em “1984”, de Orwell, está o alerta de que a democracia, embora as suas vicissitudes, é o melhor caminho para a vida em sociedade, assim como quão nocivo é um Estado totalitário, com a promoção da relativização dos direitos fundamentais. Enfim…
Angústias e triunfos. Valores e fraquezas. Amores e paixões. Cultura e selvageria. A literatura lida com a mais profunda humanidade. E lida, naturalmente, também com a Justiça. Dela, desse modo, é possível extrair reflexões importantíssimas para quem se importa com o futuro e o equilíbrio da sociedade e, logo, com o problema do Direito. Eis o grande mérito da obra que dá título à coluna, cuja leitura é seguramente indicada.

* Originalmente este conteúdo foi publicado no jornal impresso

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