O uso do poder é um convite ao excesso

*Por Guilherme Barcelos

Clássicos se tornam clássicos porquanto atemporais. Figuras, obras, discursos, momentos. Montesquieu, por exemplo, em idos da metade do século XVIII, o famoso “Do Espírito das Leis”, onde elaborou conceitos sobre formas de governo e exercícios da autoridade política. Essa obra, dentre tantas outras ideias, trouxe uma que casa perfeitamente com a temática da coluna de hoje, qual seja a seguinte: quem tem poder tende a dele abusar. Isto é – e mais especificamente: “Todo Homem que tem poder é tentado a abusar dele. É preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder”. Se o texto do pensador francês é atemporal, a verdade é que a sua advertência também o é. Onde houver poder em exercício, o abuso será um perigo, ontem, hoje, amanhã e sempre.

Antes de prosseguir, um alerta oportuno desejo registrar: Freyre de Andrade escreveu, em um livro sobre a vida de D. João de Castro, que os prólogos são um antecipado remédio aos achaques dos textos, porque andam de companhia com as desculpas. Não, não aqui, ou por ora. Não quero pedir perdão por nada. Tampouco licença. Assim escreveu Paulo Brossard de Souza Pinto em outro clássico, a sua obra “O Impeachment”, de 1964 (1ª tiragem) – tenho um exemplar da 2ª tiragem comigo, de 1965.

“Com tudo bem sabemos, que a todos não podemos aprazer; se em tudo não aprouvermos, ao menos será em dar matéria a alguns de poderem emendar, e murmurar, […] a huns pera louvarem o bem dito, e outras pera terem que dizer do mal feito”, disse João de Barros em português europeu e de época.

Tenho acompanhado com certa atenção, e não é de hoje, a evolução dos debates e embates –estes em maior medida do que aqueles – acerca da temática da desinformação no Brasil. E daí adiante poderíamos lidar com algumas questões, sempre com uma luva de feição jurídica: o chamado “Inquérito das fake news”, a postura do TSE nas eleições de 2022 – e de 2018 mesmo, o intitulado “PL das fake news” e os acontecimentos recentes a denotar uma contenda entre o proprietário do X e algumas autoridades públicas brasileiras. Tudo junto e misturado? Sim e não. O tema até é aproximado ou o mesmo, se quisermos. Mas as atuações e as críticas não necessariamente.

Não sou desses que abominam, por exemplo, eventual regulação das plataformas digitais no território brasileiro, nem vejo eventual regulação, aprioristicamente, como uma censura ou ataque à liberdade de expressão. Essa discussão, que tem tomado espaço considerável no âmbito europeu, não pode ser nenhum tabu por aqui, penso, e aí preciso, inclusive, dar razão ao Deputado Federal Orlando Silva, em texto publicado na Folha de SP na última segunda-feira (22). Todavia, penso que estamos focados, ou seguimos assim, em conteúdo, esquecendo, vez mais, a forma. Como funcionam essas plataformas? Os algoritmos utilizados? Como o conteúdo é disseminado? Por que pessoas ficam presas em bolhas? Por que, e como, eventuais conteúdos viralizam e outros não? Erros nossos, quiçá. Etc.

Diferente é o outro aspecto. E as minhas críticas não são nada novas – posso citar, inclusive, texto escrito em coautoria com André Linck e Matheus de Carvalho, de 2023, mas, antes dele, alguns textos publicados aqui mesmo e noutros espaços. Exemplos: a postura do TSE, notadamente com a Resolução que restringiu propaganda na internet em 2022, já no curso do segundo turno. O Inquérito perante o STF, que tramita há quase uma década, instaurando verdadeira jurisdição universal. As confusões existentes entre investigador/acusador e juiz. Medidas tomadas de ofício, ao arrepio do próprio CPP. E, agora mesmo, esses fatos recentes que vieram à tona, com contas suspensas mediante imposição basicamente automática e sem contraditório, nem mesmo para a própria plataforma, e sem publicidade. Etc. e Etc. Críticas várias aí, sob o prisma do devido processo legal. Várias e variadas.

Por essas e outras, ao fim e ao cabo, que tenho procurado refletir. E buscado, vez mais, as minhas maiores influências. Paulo Brossard é uma delas. E, assim o sendo, pesquei, nos últimos dias, uma entrevista dele perante a mesma Folha de SP, datada de 14 de julho de 2008. Nesta inquirição, dentre outras ideias, estiveram presentes as seguintes, demasiado atuais, todas elas, ao menos a mim assim parecem: “está havendo uma tolerância com o abuso”; “há de ser levar em conta o patrimônio da humanidade”; “está se perdendo o apreço pelas garantias” e… “o uso do poder é um convite ao excesso”. A pensar…

ORIGINALMENTE ESTE CONTEÚDO FOI PUBLICADO NO JORNAL IMPRESSO*

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