Crises na democracia: o “evangelho da violência”

As eleições gerais de 2022, marcadas por momentos tensos, assim como por condutas demasiado questionáveis por parte de algumas campanhas e, ainda, por decisões judiciais eleitorais pontualmente questionáveis, se encerraram. Houve vencedores. E houve vencidos. Sempre é assim. A única certeza da vida, conforme já escrevi aqui noutra oportunidade, é que ela está em constante modificação. Portanto, que os vencidos trabalhem para a disputa do pleito vindouro. Ponto final.

Volto à Literatura, caso não queiram acreditar em mim. E, vez mais, é da legitimidade política que estarei falando, a mesma que salta aos olhos na obra de Shakespeare. Vejam, por exemplo, na peça Macbeth, que usurpa o trono do Rei Duncan. A peça traz de modo muito contundente a sanção pela usurpação: Macbeth, tornado um tirano, vê-se com o “Bosque de Birnam” se erguendo contra si. E com o reino em chamas. Isso, definitivamente, não é aceitável. A legitimidade política, que hoje se impõe via eleições livres, periódicas e autênticas, deve ser respeitada. Dito isso, eu sigo.

Assisti, como muitos assim o fizeram, o ocorrido com o Ministro Luís Roberto Barroso em um aeroporto nos Estados Unidos na terça-feira passada. Na iminência de embarcar, o Ministro se viu cercado por um grupo de pessoas que começaram a apupá-lo com “gritos de desordem”, tais como “sai do voo”, além de vaias generalizadas. De nossa parte, entregamos toda solidariedade ao Ministro. A solidariedade e alguns pensamentos expostos nesta coluna.
O fato, em si, está longe de ser algo isolado. Quem não lembra os eventos de junho de 2020, onde manifestantes simularam ataques ao prédio do STF, se utilizando, para tanto, de uma penca de rojões? Eram “fogos de revolta”, diziam. Mas, de revolta contra o quê? Nem eles sabiam ao certo. E quanto ao Deputado Federal (RJ) que despejou palavras e comentários vis, além de ameaças, contra Ministros do mesmo STF? E… bom, a lista é bem longa.
A questão é que essas pessoas, sem muitos freios e luzes, não conhecem o conceito de respeito às instituições republicanas. Respeitar, aliás, está longe de apresentar postura servil. Criticar? Sim. Apontar erros? Sim. Porém, isso é uma coisa. Que é necessária, para não dizer indispensável, valendo lembrar o papel da própria academia jurídica nesse intento, de modo a materializar aquilo que o Professor Lenio Streck chama de “constrangimento epistemológico”. Outra coisa bem diferente é atacar, agredir, intimidar, xingar, ameaçar, pedir “fechamentos” etc.

O ordenamento jurídico possui instrumentos para questionar decisões judiciais. A Constituição, no mais, autoriza que critiquemos as decisões judiciais. Os espaços de reflexão e construção do pensamento também estão aí à disposição a quem, como eu, busca esse caminho. O resto é algo que milita contra a ordem constitucional, contra a democracia brasileira e, a depender da facticidade, que constitui crime – como o ato de incitar golpes de Estado o é.
Precisamos lembrar, nesse caminho, do “democrata em seus próprios termos”, para utilizar aqui expressão do Professor Georges Abboud. O “democrata em seus próprios termos” é um “não democrata”, no fim das contas, afinal, a democracia, para ele, é o que ele pensa que é e o que ele quer que seja. Fora daí, nada há. Nem mesmo um regime democrático. Trata-se de algo estúpido. Mas, a estupidez é uma força autoritária, lembremos. E, por isso, perigosa – Robert Musil já chamava atenção para esse perigo no século passado.

E é perigosa, sobretudo quando toma o espaço público, a “ágora”. Isso cria uma espécie de “idolatria da estupidez”. E ela, por sua vez, traz à tona uma forma alternativa de lidar com o mundo, que é, recorrendo a Abboud e a Mannheim, o “Evangelho da Violência”, talvez o único meio de vida conhecido pelo estúpido. Violência contra a razão iluminista. Violência contra a ciência. Violência contra a civilidade. Violência contra a democracia constitucional. Enfim, um golpe nos pilares da civilização.

Sejamos, pois, vigilantes. E revoltados, como Musil sugeriu, e Georges agora sugere novamente em seu “Democracia para Quem não Acredita”. Como ele diz, basta que não façamos nada para que a estupidez ascenda. Talvez por isso seja tão perigosa. Então, sejamos revoltados, sim (!). Não sendo o caso, correremos sérios riscos de sermos sufocados pela estupidez.

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