Por onde anda o sistema acusatório?

Aprendemos, desde os bancos da graduação em Direito, que o processo penal foi regido, ao longo de sua história, por dois grandes sistemas, quais sejam, a rigor: o sistema inquisitório e o sistema acusatório. As diferenças entre um e outro, é bom que se diga, são várias e variadas, com uma profundidade digna de um Oceano. Não há como desenvolvê-las aqui. Porém, há uma característica básica a notabiliza-los, isto é: o papel do juiz.

O sistema inquisitório (ou inquisitivo), que remonta há alguns séculos nebulosos na história, inclusive, é caracterizado por um papel demasiado ativo por parte do julgador – o juiz atua como parte, investiga, dirige a produção da prova, acusa e julga. Não é juiz. Mas carrasco, basicamente. Não há espaço para imparcialidade objetiva e subjetiva, tampouco para o resguardo de direitos ao acusado. E o processo, inclusive, corre mediante segrego, na maior parte das vezes – até mesmo para não expor o arbítrio (!) daquele que decide. Apesar do absurdo, é preciso registrar que essa prática nefasta frutificou às pencas ao longo da história.

Já o sistema acusatório é a superação do primeiro, ainda que tardia. O sistema acusatório caracteriza-se pela clara separação das funções de acusar, defender e julgar. Ao acusado é assegurada uma gama de direitos, como a ampla defesa, o contraditório, o direito de não ser processado e condenado com lastro em provas ilícitas, a imparcialidade judicial e a equidistância do juiz com relação às partes, a fundamentação das decisões judiciais etc. Aqui o processo é público, por regra, submetido ao escrutínio alheio, bem como a instâncias superiores. A chave é o papel do juiz – aqui o juiz é garantidor, inclusive, dos direitos dos acusados contra o poder estatal, guardião da constitucionalidade. Assim deveria ser, ao menos. Alguns falam de um sistema misto, de igual modo. Mas issonão passa de uma reminiscência autoritária; ede um álibi meramente retórico para fazer quebrar o sistema acusatório. O processo penal no Brasil é regido pelo sistema acusatório, a partir da Constituição de 1988. Assim o é. Ou, reitero, ao menos assim deveria ser.

Falo, então, à luz dessas premissas, do que assisti perante o STF no curso da semana, naquilo que lidou com o interrogatório dos réus acusados pelo 8 de janeiro. E o que vi? Vi a quebra, agora escancarada, para quem quiser ver, do mesmo sistema acusatório, algo que já vínhamos denunciando há tempos – nós e muita gente para além.

E por que houve essa quebra, vez mais? Ora, o que se viu ali foi o retorno do chamado “sistema presidencialista” na dinâmica das audiências de instrução, com perguntas dirigidas ao juiz, não mais diretamente às testemunhas ou interrogandos. E o artigo 212 do CPP? Quebra do sistema acusatório. Mas não parou por aí: e a oitiva de Mauro Cid conjuntamente, não na condição de testemunha de acusação especial, porquanto delator – ainda que ele seja corréu? Nova quebra. E a postura ativa do magistrado na formulação de perguntas, não apenas aos réus em geral, mas ao delator? E a ordem, começando pelas partes e só passando ao juiz à título de complementariedade, regra básica de “cross examination”, até mesmo porque o interrogatório é um ato de defesa, não um instrumento para obter a confissão (isso é para um sistema inquisitorial). Enfim… resta lamentar. Anda longe, pois, o sistema acusatório. E não é de hoje.

 

JÁ FOI CONTEÚDO NO IMPRESSO

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