Cidadania no Brasil: a eterna incompletude

A construção da cidadania é caminho longo, tortuoso e, tal como referido por José Murilo de Carvalho em sua obra “Cidadania no Brasil”, ao depararmo-nos com o tempo de hoje, materializa-se um sentimento desconfortável de incompletude. De que modo a incapacidade do sistema representativo de produzir resultados que impliquem a redução da desigualdade e a construção de uma sociedade justa e solidária, fenômeno que denota o descumprimento do pacto de 1988, coloca em risco a democracia constitucional brasileira?
Na Inglaterra, berço das revoluções liberais que refundaram o Estado moderno, os direitos civis despontaram como sendo a primeira garantia da cidadania. Deles, ou do seu exercício, os cidadãos adquiriram, materialmente, direitos políticos. E, a partir do exercício dos direitos políticos, direitos sociais.
No Brasil, todavia, ocorreu fenômeno diverso. Voltando, então, à obra do Professor Murilo, os direitos políticos vieram antes dos direitos civis. Mesmo assim, no entanto, na Colônia, no Império (1822-1889) e, aliás, na República velha (1889-1930), não havia consciência de direitos. Direitos políticos para poucos. Direitos civis para pouquíssimos. Direitos sociais para ninguém.
Na República Nova, fruto da Revolução de 1930, o que ocorreu foi o oposto. Direitos sociais sem direitos civis e políticos, notadamente com o golpe do Estado-Novo. E a promoção de direitos sociais em regimes de exceção, longe de emancipar a cidadania, torna-a refém, seja pela força, seja, principalmente, pelo carisma e pela gratidão.
A Constituição de 1988 proclama a construção de uma sociedade justa e solidária como um dos fundamentos da República. E consagra generoso catálogo de direitos fundamentais (individuais, sociais, ambientais e culturais). Porém, mesmo assim, há no Brasil evidente déficit de cidadania. Ainda hoje há. E o projeto constitucional de 88, consagrado pela Constituição Cidadã – assim chamada por Ulysses Guimarães, longe está de ser efetivado.
A incompletude do projeto constitucional gera sentimentos de desconfiança, de descrédito. Gozamos hoje de liberdade política (espero que assim se mantenha a realidade!). E os direitos individuais, não sem percalços, são minimamente resguardados. Entretanto, estamos atrasados quanto aos direitos sócio-culturais. E, em um país como o Brasil, onde o Estado de bem-estar social não passou de um mero simulacro, isso só faz agravar desigualdades (a população aumentou, o investimento público caiu…).
Eis aí a porta-aberta para o enfraquecimento do projeto constitucional. E para a manipulação autoritária, seja pelo discurso, seja por gestos (nada discretos, não raro), dos déficits de cidadania para o assentamento de projetos autocráticos.
Assim sendo, se o preço da liberdade é a eterna vigilância nas palavras de Thomas Jefferson, ou, nas palavras do grande Gaspar Silveira Martins, se a eterna vigilância é o preço da liberdade, não devemos descurar jamais da igualdade e da fraternidade. O não cumprimento do programa constitucional em sua plenitude, a partir do agir da representação tendente a reduzir desigualdades sociais e a fazer valer materialmente o comando constitucional, pensamos, é o maior risco à nossa (já) combalida democracia.

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