Qual a relação entre mentira e política, entre mentira e eleições? E como o legislador brasileiro lida com o problema da mentira no espectro político-eleitoral? Pois bem. Em “Crime e Mentira na Política” (Fórum, 2016), Fernando Gaspar Neisser realiza uma rica análise dos crimes eleitorais que propõem o controle de conteúdo na propaganda eleitoral, tudo sob a ótica de sua pertinência dentro do sistema criminal eleitoral, da sua necessidade e, ainda, da sua eficácia quanto à proteção dos bens jurídicos tutelados. O livro, publicado em idos de 2016, ainda que tenha nascido antes do “estouro” do fenômeno das “Fake News”, representa um ótimo farol para compreendermos o tema, no passado, no presente e, ainda, para o futuro.
Dividida em cinco capítulos, a obra, que é de muito fôlego, aborda a temática da democracia e do controle positivo da propaganda eleitoral, a temática das campanhas eleitorais à luz daquilo que prevê o ordenamento jurídico quanto à propaganda política e a temática da legitimidade e da necessidade de criminalização da mentira da propaganda eleitoral, para, após, no último capítulo do livro, perquirir acerca da viabilidade e da oportunidade da criminalização da mentida na propaganda eleitoral.
A liberdade do exercício do direito de sufrágio e a legitimidade dos pleitos eleitorais são, tal como diz o autor, os paradigmas buscados pela tutela legislativa. Os crimes eleitorais, a seu turno, possuem como pano de fundo a “proteção da veracidade e autenticidade das informações transmitidas aos eleitores, permitindo a formação da vontade concernente ao voto de forma serena, desimpedida e sem a contaminação por dados falseados”.Já o principal parâmetro normativo abordado pelo escrito é o artigo 323 do Código Eleitoral, que criminaliza a divulgação de “fatos sabidamente inverídicos” na propaganda eleitoral.
Democracia é o modo de organização do corpo político que permite, simultaneamente, a participação efetiva de todos os seus membros adultos, que podem se candidatar e escolher representantes por meio de eleições livres, justas e periódicas, com ampla liberdade de associação e troca de informações, permitindo que se atinja um entendimento esclarecido sobre a agenda política e suas alternativas. E a eleição assume na democracia, simultaneamente, os papéis de mecanismo de escolha e de fonte de legitimação.
Ao mesmo tempo, o mecanismo pelo qual o eleitor pode conhecer os candidatos e a suas propostas é a propaganda eleitoral. A propaganda eleitoral, por sua vez, pode ser positiva ou negativa. A primeira é aquela que visa convencer os eleitores a votar em determinado concorrente. Já a segunda nasce simultaneamente com a propaganda política. Pode ser comparativa, depreciativa, ofensiva ou mentirosa, sendo necessário compreender os seus matizes para que se possa fixar os limites toleráveis. Por ser, pois, a propaganda eleitoral, o mecanismo através do qual há a união comunicativa entre candidatos e eleitores, é que todo e qualquer limite imposto nesse caminho deve ser muito bem avaliado.
Apesar disso, tal como aponta Fernando, as mazelas da vida política nacional, da corrupção às promessas descumpridas, não raro conduzem a opinião pública a defender reiteradas reformas legais, expandindo o escopo da ação punitiva do Estado. E a frutificação deste tipo de investida nem sempre é sã. Raramente o é, digo eu, porquanto acríticas. Por que punir? Quem punir? Como punir? Perguntas importantes, cujas respostas nem sempre são perquiridas no âmago de processos legislativos com objeto restritivo. O livro de Neisser, eis aí o grande mérito da obra, é um tratado reflexivo e propositivo acerca destas perguntas, tendo como horizonte algo demasiado relevante: a democracia.
* Originalmente este conteúdo foi publicado no jornal impresso