Destino ou vontade? O fundamento da Modernidade e do Estado Moderno

O ser humano é ou deve ser desejante? O Criador fez da criatura algo munido de desejos? Como justificar o pecado original? E a queda, a expulsão do paraíso, qual é o seu significado? Podemos falar em livre arbítrio? Somos, enfim, responsáveis por nossos atos e escolhas? Razão ou destino? A busca de respostas aos questionamentos postos permeou, em verdade, o trajeto dos tempos. E o lócus do fundamento mudaria conforme o paradigma legitimador da ordem das coisas. Existe algum sentido último para nossas ações ou a vida humana não passa de um conto cheio de bulha e de fúria, dito por um louco, significando nada, tal como perguntou Shakespeare em Macbeth (V, 2)? As indagações podem começar a ser respondidas a partir do famoso debate entre Erasmo e Lutero, travado no âmago do ponto de inflexão que representou o século XVI.
Enquanto Erasmo apontava em seu “Sobre o livre-arbítrio” que todos os seres humanos possuem o livre arbítrio e que a doutrina da predestinação não estava de acordo com os ensinamentos contidos nas escrituras, Lutero afirmava na obra “De servo arbítrio” que o pecado tornava os seres humanos incapazes de atuar em prol de sua própria salvação. Assim, não existiria o livre arbítrio, afinal, qualquer arbítrio que os seres humanos pudessem ter seria completamente subjugado pela influência do pecado.
É perceptível, desse modo, que o antagonismo entre as ideias de Erasmo e Lutero residia num ponto em específico, qual seja a capacidade do ser humano de ser livre, de fazer livremente as suas escolhas e, consequentemente, de assumir por elas a devida responsabilidade. Em Lutero, a legitimação da autoridade estava na metafísica, em uma entidade pretensamente superior chamada Deus. Ele seria a fonte de legitimação da ordem. Já em Erasmo há uma elevação do ser humano a partir da defesa da existência do livre arbítrio.
Eis que a dicotomia aí existente escancara a tensão entre a Idade Média, que ainda era, e Modernidade, que ainda não havia chegado, mas já se anunciava. Na Idade Média o fundamento da legitimidade era divino, metafísico, ao passo que, na Modernidade, haveria o encontro de um fundamento mais concreto, por meio da razão humana. Da vontade divina passaríamos aos desejos humanos, à vontade dos seres, à razão terrena. E a fonte de legitimidade e paz da e na ordem social, de Deus, passaria ao Homem. Lá, a humanidade não poderia ser desejante, afinal, isso contrariaria os desejos de Deus. Cá, todavia, o Homem não só seria visto como um ser desejante, como o desejo no Homem seria visto como algo natural, inerente à Criação, cabendo, então, aos próprios Homens, o brecar dos seus ímpetos, quase que a anunciar a vitória do Caído, personagem da obra de John Milton (Paraíso Perdido), queindagava (!): “Por que terá o onipotente proibido a eles os frutos? Acaso é crime saber? Sua felicidade terá base na ignorância?”.
O que nos tornaria humanos? Sucumbir aos nossos desejos? Ou controlá-los? Se o controle for a resposta, como fazê-lo? A resposta viria a partir de uma criação chamada de Estado. E por que há um Estado? Por que deve haver? O que legitima o exercício do poder? Autores como Jean Bodin, Nicolau Maquiavel e Thomas Hobbes procurariam responder, então, essas perguntas. Mas não eles, apenas. Shakespeare mesmo trouxe várias respostas a partir das suas célebres peças, lidando com o poder, com a legitimidade no exercício do poder, com os desígnios humanos e com o controle deles. Com as respostas, haveria, enfim, a partir do renascimento, e daí em diante, a instituição da Modernidade ocidental.
Quando dois sujeitos desejam a mesma coisa, a guerra é inevitável, disse Hobbes. Logo, ante os desejos humanos, devidamente reconhecidos como tais, uma solução concreta despontaria como nova fonte de legitimação do poder, uma artificialidade racional chamada “contrato social”, sendo que a maior tarefa do Príncipe, a partir daí, passaria a ser a garantia da segurança dos cidadãos contra eles mesmos – e ele precisaria ser apto, afinal, da sua aptidão pública e política (virtú) dependeria, pois, a sorte do Reino. Do destino medieval, passou-se ao desejo, à vontade e, finalmente, à razão. O fundamento da Modernidade e do Estado moderno está presente aí. E, mais do que isso, também está presente o fundamento de um movimento surgido logo em seguida, o Iluminismo com a sua razão antropocêntrica, que, não contente com o controle dos “comuns”, passou a exigir o controle do próprio “governante”.

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