O arroz de porco III

Por Mozart Gravi

Quando eu morava em Rio Grande, um casal de colegas de turma da Faculdade de Letras da FURG, João e Letícia, tenentes da Marinha do Brasil, riograndinos da gema, descendentes diretos dos portugueses açorianos que colonizaram Rio Grande e esta região, convidaram-me para jantar na casa deles, com o João dizendo que ia fazer o “verdadeiro arroz carreteiro”, fazendo troça. Aceitei e marcamos para o sábado. Morávamos no Cassino.
Porém, fiquei matutando naquele “verdadeiro arroz de carreteiro”. Para mim, no campo da Cultura não existe verdadeiro ou não, mas, o que é original, o que tem origem. A História da Cultura se desenvolve a partir de uma origem, que acontece pela ação humana, resultando na produção de riquezas, como é o caso do martelo. Assim sendo, o “arroz de carreteiro” tem uma origem. Com efeito, alguém no passado pegou o charque bovino, cebola, arroz e água e preparou, talvez, uma das comidas mais saborosas e emblemáticas da culinária gaúcha. Não cabe aqui apresentar receitas, já que não é esse o propósito. Cada qual tem a sua. Eu tenho a original.
Todavia, vamos ao jantar. Na a cozinha da casa deles, o João preparava a janta. Encontravam-se ali as Professoras de História, Manoela e Deolinda, os tenentes Miranda e Andrada, da Marinha, o Jorge Pescador, dono de uma parelha de pesca, o Mário Jardineiro e sua esposa, Dona Maria, todos riograndinos da gema e descendentes diretos de açorianos. O João cortava uma carne de porco fresca, muito tomate e cebola, pimentão e pimenta. Disse-me que estava fazendo o “verdadeiro arroz de carreteiro”, novamente fazendo troça. Respondi que não existe o “verdadeiro arroz de carreteiro”, mas, o “arroz de carreteiro original”, afirmando que sabia o que estava falando, visto que na minha casa tinha morado e morrido, talvez o último carreteiro da região, o João Capincho, quando eu era criança, com quem aprendi a fazer o “arroz de carreteiro original”, que consiste num prato com arroz, charque bovino, cebola e água, nada mais. Para minha surpresa, todos riram a gargalhadas. Então, o João explicou que estava preparando o “arroz de porco” ou “arroz de paqueteiro”, prato típico e tradicional dos Açores.
A professora Deolinda a contar-me o que era esse prato e sua origem. Contou que Açores era um arquipélago português, situado a 1493 Km da costa portuguesa, formado por pequenas ilhas vulcânicas e que a maior delas é a ilha de São Miguel, com apenas 39 Km de comprimento e 4,9 Km de largura; que essas ilhas por serem de origem vulcânica têm um solo fértil, rico em ferro e sais minerais, principalmente fósforo, enxofre e sílica; que durante os Séculos XVIII e XIX até meados do Século XX não existia pecuária bovina de corte, somente leiteira voltada para a produção de queijos, manteiga e doces; que, entretanto, a produção de porcos e galinhas era bem desenvolvida desde o Século XVIII, visto que os açorianos produziam trigo, arroz e centeio, com os quais preparavam uma ração para alimentar porcos e galinhas para produção de carne que era salgada para ser conservada e comercializadas nos portos de Lisboa e Cidade do Porto, em Portugal; que o “arroz de porco” originou-se por essa época (Século XVIII – 1700) e consistia num prato feito com charque de porco, arroz, cebola, alho, pimenta e açafrão; que ao longo do tempo, já com o advento da refrigeração, ganhou uma nova versão com carne de porco fresca, arroz, tomate, pimentão, cebola e alho, perdendo o açafrão, sendo que ambas as versões eram cozidas em panela de ferro diretamente nas brasas de rochas vulcânicas, já que estas por serem ricas em ferro, fósforo, enxofre e sílica, quando postas no fogo, tornam-se incandescentes virando brasa que duram por muito acesas; que em 1721 iniciou-se uma linha marítima de transporte de carga, passageiros e correios entre o Arquipélago e o Continente (Lisboa e Cidade do Porto); que a embarcação usada era um paquete a vela, depois a vapor já no Século XIX, de tamanho médio (60 m) para a época, provida de leme com timão e fazendo a travessia em 48 a 52 horas, sob o comando do Mestre Paqueteiro, que apesar de ser homem do mar, tinha origem em família agricultora das ilhas, por isso adotou o “arroz de porco” como sua comida predileta, que passou a ser chamada de “arroz de paqueteiro”.
Á vista disso, é possível deduzir a hipótese de que o “arroz de paqueteiro” seja o precursor do “arroz de carreteiro”. Primeiro, porque eram profissões similares, uma ao mar, outra a terra, ambas transportando a produção de dois povos para ser comercializada, gerando riquezas; segundo, os portugueses açorianos que vieram colonizar o Rio Grande de São Pedro, desembarcados em Rio Grande em 1752, trouxeram com eles a cultura, os costumes e tradições do seu povo, entre eles a culinária. Inicialmente, foram conduzidos a vários núcleos que viriam a ser por eles povoados: Rio Grande, Viamão, Porto do Viamão (Porto Alegre), Triunfo, Santo Amaro, Rio Pardo, Estreito, Taquari, Santo Antônio da Patrulha, Mostardas e Cachoeira. Alguns se dirigiram à região da campanha, adquirindo sesmarias, dedicando-se à pecuária e povoando a campanha gaúcha. Bernardino José de Souza em seu livro Ciclo do Carro de Bois no Brasil afirma que a carreta de bois foi introduzida no Rio Grande do Sul por estes imigrantes açorianos àquela época, que era tosca e simples, sendo aperfeiçoada com o tempo. Com ela surge a figura do carreteiro que, provavelmente, assimilando-se à realidade tenha incorporado o “arroz de paqueteiro” ao seu costume alimentar, surgindo, então o “arroz de carreteiro” com as devidas adaptações.
Nos estudos da Cultura dos povos não se pode afirmar nada em definitivo, nada em absoluto, visto que há sempre uma origem e somente esta confere autenticidade a uma tradição ou um costume. O Homem enquanto Humanidade não é um ser estático. Ele evolui, assimilando acréscimos históricos, desenvolvendo novas atitudes e novas fontes de capacidades e habilidades, que suscitam novas origens.

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