O discurso moralista

O título desta coluna deveria ser “O discurso moralista… na República”, algo que os leitores irão entender a seguir. E a pergunta inicial do texto, a seu turno, é: golpe ou Proclamação revolucionária? Com efeito, a ideia republicana já possuía, nos últimos anos do período monárquico, uma capilaridade que perpassava pelos jornais, cafés e pelos quartéis. Sendo que a República consumou uma tendência, que se aproveitou do desprestígio da Coroa. Não se tratou, portanto, de uma revolução estrita, apesar de ter sido um forte movimento político, não tendo se revestido de maior sentido social. Foi, em verdade, um golpe de morte dado, a partir da caserna, no poder central monárquico, sem que tenha havido participação popular nesse intento, direta ou indiretamente. Tratou-se de um golpe militar.

O que afirmo no parágrafo inaugural é corroborado, dentre outros, pela pena de Euclides da Cunha, que, em seu notável “Da Independência à República”, consignou que o advento da forma republicana de governo não deveria ser confundido com a “bela parada comemorativa de 15 de novembro de 1889”. Com pano de fundo, três problemas principais: o curso das ideias republicanas e o advento de uma nova mentalidade nos centros de influência da capital, inclusive a partir do “positivismo de farda” que estava em ascensão desde o término da Guerra do Paraguai, a questão da abolição da escravaturae a questão religiosa. A Monarquia não mais existiria. A República estaria posta e consumada. E o povo assistiu àquilo bestializado, eis a frase de Aristides Lobo, tão logo consumado o governo provisório.

Interessa-nos, por outro lado, a semântica legitimadora da investida – bem-sucedida – contra o trono. Especialmente em um aspecto do discurso consagrado naquela quadra dos acontecimentos, que culminaria com a queda do monarca: o apelo, abstrato ou difuso, à moralidade da Nação, confundindo-se, tal apelo, com um aparente senso de missão cívica/patriótica a ser desencadeada, partindo de quem, poder-se-ia dizer, representaria uma autoproclamada espécie de poço de virtude da ou na institucionalidade nacional, que proveria a purga e as soluções para os males do Brasil.

Logo no dia seguinte ao 15 de novembro, Deodoro da Fonseca, na condição de Chefe do Governo Provisório, discursou procurando explicitar as razões da deposição do Imperador, sustentando que o povo, o exército e a armada nacional teriam agido em “perfeita comunhão de sentimentos”, a partir de um ato de caráter “essencialmente patriótico” e pelo “bem da pátria”. Percebe-se ali um claro argumento de cunho vago e apelativo, que permeou a aurora da República brasileira. Um discurso de moral adjudicadora, pura e simplesmente, com matiz salvacionista.

Há, neste conjunto de “princípios”, os pilares norteadores da prática positivista, com forte raiz em um castilhismo incipiente, que nortearia não apenas o Rio Grande do Sul no alvorecer da República, mas parcela considerável dos atores fincados no centro do poder republicano, tal como bem frisado por Ricardo Vélez, a saber: a) a “pureza das intenções”; b) o bem público interpretado como “reino das virtudes” e; c) o exercício de uma tutela moralizadora do Estado sobre a sociedade.

De certa forma, houve aqui, uma “reivindicação de representação exclusiva do povo”, com lastro em padrões líquidos, verdadeiras palavras de ordem, cristalizadoras do uso da moral como critério metafísico, que viria sustentar o agir do novo regime. Mas não apenas. Antes de sustentar a dinâmica da República nascente, a mesma prática discursiva, a partir de palavras de um matiz moralista, salvacionista e purificador, legitimaria o golpe de Estado do dia 15. E o que ocorreu, no fim das contas, foi um incessante recorrer à manipulação de um conteúdo vazio de sentido, não sindicável no mundo da vida, pautado em uma visão simplista e dicotômica: puros contra impuros, moral contra vícios, salvação contra ruína. Assim floresceu linguisticamente a República, que perdura por mais de cento e trinta anos. E a prática? Também perdura, quiçá, mesmo com outros interlocutores. E o que começa mal, o ponto é este, dificilmente caminhará bem…os exemplos de ruptura institucional com base em discursos moralistas são muitos daí em diante. Sejamos sempre vigilantes!

ORIGINALMENTE ESTE CONTEÚDO FOI PUBLICADO NO JORNAL IMPRESSO*

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