O pensamento juspolítico de Gaspar Silveira Martins

Gaspar Silveira Martins, o grande líder do Partido Liberal no Rio Grande do Sul na época do Império, fundou, em 1892, a partir do Município de Bagé-RS, o Partido Federalista, reunindo liberais, conservadores e dissidentes republicanos (republicanos moderados) no intento, dentre outras coisas, de combater o governo de Júlio de Castilhos ou as suas ideias. A monarquia havia caído. A República havia surgido. No âmago desses acontecimentos, dissidências acerca de como conformar o poder na nova ordem que se inaugurava eram a tônica. No centro dos debates a forma de Estado e o sistema de Governo: federalismo típico ou atípico, parlamentarismo ou presidencialismo, respectivamente. Silveira Martins acreditava no enfraquecimento do poder do Presidente da República e no fortalecimento do Legislativo. Castilhos, por outro lado, desprezava o fortalecimento do Parlamento e apostava na centralidade do Executivo. Castilhos dizia que Silveira Martins estava afogado na metafísica da representação. Silveira Martins via em Castilhos um ditador que se julgava intérprete privilegiado da vontade coletiva. Cerca de um ano após a fundação do Partido, eclodiria a Revolução Federalista de 1893, também conhecida como “Guerra da Degola”. De um lado, o “Patriarca da República”. De outro, o “Rei do Rio Grande”.
O fim dessa história é de todos conhecido. Durante dois anos o Rio Grande do Sul foi dividido. Sangue foi derramado em demasia. Campos, até então verdejantes, de rubro foram tomados. E a verdade é que o futuro da neófita República foi posto em xeque. Muito mais do que um conflito entre duas lideranças, a luta era entre dois projetos. Castilhos, todavia, sagrou-se vencedor. E logrou preservar o seu mandato, além da Constituição de feição autoritária que norteava o Estado. Já Silveira Martins por muito tempo foi esquecido. Morreu no exílio. Suas ideias também haviam sido exiladas. Mas elas não morreram. E nem poderiam, afinal, nas palavras de Félix Contreiras Rodrigues, ele próprio era uma escola – “não se prende a nenhuma escola porque ele mesmo é uma escola; tem a sua ideia e tem quem o acompanhe”.
Pois o estudo da história das ideias políticas no Brasil exige o estudo do pensamento de Silveira Martins, seja pela importância do personagem na história do país, seja pela profundidade com a qual lidou com temas dos mais relevantes, importantes não apenas àquele tempo, mas aos tempos de hoje mesmo (e eu cito, por exemplo, o relevo da defesa dos direitos individuais e, inclusive, da separação entre Igreja e Estado). Eis aí, então, o grande mérito da obra de Milena Cardoso Costa, cujo título coincide com o da coluna de hoje (COSTA, Milena Cardoso. O pensamento Juspolítico de Gaspar Silveira Martins. Porto Alegre: Editora Edigal, 2016, 143 p.).
Dividida em quatro partes, a obra, que conta com o prefácio do historiador Gunter Axt, perpassa pelos seguintes eixos temáticos: o regime de governo, o sistema de governo, a forma de Estado e a forma de Governo. No primeiro, a autora faz uma rica divisão do pensamento de Gaspar por fases, quais sejam a fase do liberal radical (primeira fase), a transição para um liberalismo conservador (segunda fase) e a fase do chefe revolucionário no nascedouro da República (terceira fase). No segundo, a ênfase recai nas críticas de Silveira Martins ao “poder pessoal” como óbice ao parlamentarismo, às críticas dele àquilo que poderíamos chamar de “governo carismático”. De igual modo, são tratadas importantes questões acerca da matéria eleitoral e de como o tribuno via o parlamentarismo como solução para os problemas da República brasileira. Já no terceiro tópico de análise, a abordagem reside na ideia de liberdade aos Estados pela descentralização administrativa e em considerações acerca do valor da unidade nacional pela centralização política. Por fim, no quarto tópico desponta o pensamento de Silveira Martins segundo o qual a República era fato consumado. Ao mesmo tempo, entretanto, são expostos os brados de Gaspar contra a República que se formava naquela quadra histórica.
Impressiona, a esse respeito, a atualidade de todos os temas tratados. E, sobretudo, a atualidade do pensamento de nosso conterrâneo, bastando ver que as principais discussões das quais ele se ocupava lá atrás vez ou outra ressurgem hoje em dia, como ocorre quanto ao sistema de governo. Por essas e outras, ao final e ao cabo, é que obra de Milena Costa deve ser lida. E, sobretudo, que o pensamento de Silveira Martins não deve jamais ser esquecido. Do passado, enfim, poderá ele iluminar o presente para, quiçá, garantir o futuro. A contemporaneidade é inquestionável.

* Originalmente este conteúdo foi publicado no jornal impresso

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