Direito do espetáculo

Em 1967 o francês Guy Debord escreveu “La Societé du Spetacule”(A sociedade do espetáculo), antecipando, pode-se dizer, as agruras decorrentes da fragmentação da cultura “(pós)moderna”.Na proposição 212 de seu livro, Debord chama de espetáculo a ditadura efetiva da ilusão na sociedade moderna. Ele dizia que, na sociedade do espetáculo, a vida deixa de ser vivida para ser representada, vivendo-se “por procuração”, como os atores da vida fingida que encarnam uma peça. A obra, de caráter ferinamente contestatório, instala uma batalha contra a perversidade da vida ou da sociedade dita pós-moderna, que cultua a imagem, o palco das representações, a aparência ao ser, a ilusão à realidade.

O espetáculo, na dicção de Debord, consiste na multiplicação de ícones e imagens através dos meios de comunicação de massa, rituais políticos, religiosos e hábitos de consumo, de tudo aquilo que falta à vida real do “Homem médio” (não gosto muito do termo, mas é utilizado pelo autor). Celebridades instantâneas, atores (não necessariamente aqueles que cultuam a cena como profissão), políticos, moralistas, personalidades, gurus, mensagens, publicidades etc., transmitem, diuturnamente, uma sensação de aventura permanente, felicidade, satisfação, grandiosidade e ousadia. Destarte, o espetáculoé aquilo que acaba por conferir uma aura de integridade e sentido a uma sociedade absolutamente esmigalhada e fragmentada, que faz do indivíduo um infeliz, anônimo, insignificante e solitário. O mundo real se transforma em meras imagens, e estas, segundo Debord, tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico. É a realidade transformada em imagem, o espetáculo, em realidade. É, digo eu, o reino do espetáculo suplantando a realidade. A vida em sociedade se apresenta como um grande espetáculo, ou, na dicção do próprio autor, como uma “imensa acumulação de espetáculos”. Tudo se tornou uma representação. A imagem é tudo. Logo, tudo vira espetáculo.

E o Direito, o que tem a ver com isso? Ora, não são raras as ocasiões em que verificamos, no bojo das práticas jurídicas, um ímpeto de “fugir da sensação de invisibilidade e insignificância, uma vez que ser é ser percebido”, tal como afirma Rubens Casara. E é aí que esse desejo de (imerecido) protagonismo adentra a órbita do Direito, restando, pois, consubstanciado em uma vontade de poder que faz com que o sistema jurídico acabe por ser enfrentado como um mero espetáculo. E, bem sabemos, no espetáculo não há(verá) espaço para direitos. O voluntarismo impera e, nesse caminho, a autonomia do direito vai dando espaço à arbitrariedade alheia.

Querem exemplos? Matérias jornalísticas espetacularizadas e sem o franqueio do contraditório (quando muito uma nota de rodapé), vazamento de sigilo de operações ou investigações, seletividade processual, fabricação de escândalos, manifestações adjetivadas, manipulações semânticas, utilização de uma lógica dicotômica de amigo-inimigo, de mocinho-bandido, de puro-impuro e afins. Tudo isso, no final das contas, acarreta, sobremodo, a inserção de instintos justiceiros na cena do Direito, externos (exógenos) ou mesmo internos (endógenos).

Já os espectadoresadentram em um estado sublime (sic), de onde provém uma explosão de regozijos proporcionada pela peça a eles apresentada. Deleites absolutos, pouco importando se isso o agir é correto ou não, se provas houve ou não para determinada condenação (lato sensu), ou se determinado termo decisório se encontrou legitimado pela ordem constitucional e legal e se os direitos dos acusados foram ou não respeitados. Enfim, o devido processo legal é subsidiário. Isto é o de menos. O que importa é o ápice do espetáculo. E a aposta, por seu turno, é na exceção.Nessa lógica, os fins justificam os meios, quando, no âmbito jurídico, a máxima é exatamente o inverso, isto é: os meios justificam/legitimam os fins. Logo, se essa é a finalidade do processo-espetáculo, pouco importam os meios utilizados para tanto, afinal, a condenação, sumária, não raro, é o desiderato a ser alcançado, e assim o é de modo a agradar os desejos de uma ávida(e com traços medievais) audiência.

Assim sendo, a pergunta final é: poderíamos falar de um processo judicial eleitoral do espetáculo? A refletir…

ORIGINALMENTE ESTE CONTEÚDO FOI PUBLICADO NO JORNAL IMPRESSO*

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