O princípio da separação dos poderes, de Montesquieu a James Madison

Em “O Homem sem qualidades” (1930) Robert Musil retrata a história de Ulrich, um homem que não consegue se adaptar à sociedade na qual vive. Ulrich não é um homem sem qualidades, mas um sujeito com várias qualidades, imerso, todavia, em um mundo com qualidades sem semelhantes para absorvê-las, para cultuá-las e para vivê-las. Assim, é que ele se vê deslocado em um cenário marcado pelo culto à objetividade, à praticidade, como se tais atributos não fizessem parte de um conjunto de qualidades humanas, mas representassem os únicos fundamentos de uma vida boa. O ser humano seria mera engrenagem de algo, abdicando da sua subjetividade por um projeto ditado de cima para baixo. E a iluminação intelectual restaria sufocada pelo propagar de uma “cultura” de simplificação de massa, onde a inteligência, como afirmou George Orwell, cederia à pressão confortável das frases e pensamentos pré-fabricados, sem reflexão acerca do mundo.
Eis que o Direito brasileiro, ao menos em parte, acaba por representar exatamente aquilo que Musil denunciou, resumindo-se a um propagar de ideias rasas, nada reflexivas e simplificadoras de fenômenos complexos. Um Direito “prêt-à-porter“, como diz o professor Lenio Streck. É duro o que afirmo. Porém, é preciso dizer o que digo. E, dentre outras simplificações observadas no contexto jurídico brasileiro, uma delas reside na abordagem do princípio da separação dos poderes e na atribuição da respectiva autoria, seja pela palavra falada, seja pela palavra escrita, a Montesquieu, especialmente quando isso se dá pela crítica a eventuais atuações do Judiciário, notadamente no exercício da jurisdição constitucional, tida como afrontosa à formulação da separação de poder. Juristas e políticos, nada raramente, ao assim agirem, “miram no padre e acertam na Igreja”. O tema da coluna de hoje, portanto, procurará apresentar alguma luz ao problema, de modo a demonstrar, ao contrário do que se fala corriqueiramente, que não se deve citar Montesquieu para justificar a separação de poderes moderna ou contemporânea, afinal, o modelo tripartite (Legislativo, Executivo e Judiciário), sobretudo na perspectiva de freios e contrapesos (onde um poder controla o outro), não é tributário ao grande pensador suíço, mas, sim, a outra figura tão importante quanto na história política e jurídica ocidental, qual seja James Madison, o quarto Presidente da história dos EUA.
As ideias de Madison acerca da separação de poderes representaram um grande avanço naquilo que se refere ao que Montesquieu asseverou no famoso “O Espírito das Leis”. É em Madison que surge o controle recíproco entre os poderes da República, tal como conhecemos hoje. Assim sendo, eis a grande diferença entre Montesquieu e Madison, enquanto na vertente continental de Montesquieu não havia preocupação propriamente com a limitação do poder constituído, afinal, tocava ao Parlamento o controle do Executivo, sem que se desse muita (ou quase nenhuma) importância ao Judiciário (que sequer era visto como um poder), na tradição norte-americana o que ocorre é uma evolução do conceito. Montesquieu não via o Judiciário como poder. E a tripartição de poderes na obra dele jamais incluiu os juízes – os três poderes seriam a Câmara Baixa (o povo), a Câmara Alta (a nobreza) e a Coroa (o Rei ou a Rainha). Já em Madison o Judiciário é chamado à arena pública como um importante mecanismo de controle, não só do Executivo, mas, preponderantemente, do Legislativo. Um verdadeiro poder de controle em prol da defesa da força normativa da Constituição.
Dizia Montesquieu: “onde não há separação de poderes não há liberdade”. Esta ideia inspirou os primos do Norte a impor a separação dos poderes a partir da Constituição escrita, é verdade. Mas, ao invés da noção dura de separação de poderes proposta por Montesquieu, que sequer considerava os juízes como representantes de um poder, os redatores da Constituição dos EUA, pela pena de Madison, os aproximaram, acabando por impor um sistema de freios e contrapesos ou, se assim se quiser, de controle recíproco entre os poderes, onde um controla o poder do outro. E é com Madison, apenas e tão somente com ele, que o Judiciário vira um player na esfera pública. Daí, pois, que falar hoje em Montesquieu, notadamente em um cenário de abordagem crítica das atuações judiciais em sede de controle de constitucionalidade, torna-se algo impreciso, histórica e juridicamente impreciso. E injusto para com o brilho de James Madison, aliás. Façamos dar “a César o que é de César”, portanto.

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