Sobre as amarras de Ulisses (parte 2)

Na coluna da semana passada, dia 03, escrevemos acerca das relações existentes entre Direito e Literatura. E de como a Literatura pode embelezar o Direito, além de servir para explicar boas questões do universo jurídico. Falamos de Milton e Shakespeare. De Robert Bolt, de Robert Musil e do professor José Castro Neves, um dos expoentes brasileiros no desenvolvimento dessa intersecção. E falamos também de Lewis Caroll que, em seu “Alice através do espelho”, pela boca da personagem “Humpty Dumpty”, apresentou, com maestria, o modelo de sujeito que dá às palavras o sentido que quer – “Quando eu uso uma palavra, ela significa exatamente o que quero que ela signifique: nem mais, nem menos”. Usei a obra de Caroll justamente para criticar as interpretações acerca do art. 142 da CF e da soberania popular que alguns semelhantes promoveram. Hoje, então, seguiremos o passo. E é de Ulisses que falaremos.

Na “Odisseia”, de Homero, narra-se a travessia de Ulisses e de sua tripulação de Troia a Ítaca, na Grécia. Tão logo finda a epopeica guerra entre gregos e troianos, Ulisses passaria por toda sorte de obstáculos em sua travessia de retorno. Um deles se daria na Ilha de Capri, a “terra das sereias”. Estes seres, segundo narra história, carregavam o poder de hipnotizar os homens através dos seus cantos, o que acabaria por conduzir as embarcações aos rochedos da morte, de onde dificilmente poderiam escapar. Ulisses sabia que não poderia resistir “ao canto”. E, com isso, pediria aos seus marujos que o amarrassem ao mastro do navio. Somente assim ele resistiria. Como, de fato, resistira.

Enquanto muitos dos envolvidos naquela saga foram notabilizados por serem grandes guerreiros e, portanto, pela força, como Aquiles ou Heitor, Ulisses o foi pela inteligência, valendo lembrar que ele próprio teria sido o pensador por trás do famoso “cavalo de Troia”, artimanha que faria vencer a fortificação que cercava a cidade e resolveria a contenda de dez anos em prol dos gregos. A mesma inteligência – e perspicácia –esteve presente na travessia de retorno.

A questão é: sabedor dos efeitos arrebatadores do cantar das sereias, Ulisses ordenou aos seus marinheiros que o amarrassem ao mastro do barco, e que, em qualquer hipótese, viessem a soltá-lo futuramente, não importando quaisquer ordens futuras que ele próprio viesse a emitir em sentido oposto. A ordem era clara: ele só poderia vir a ser desatado quando tivessem concluído a passagem pela ilha. Resistir era quase impossível. Ciente dessa realidade, no fim das contas, ele criou uma autocontenção, evitando que viesse a sucumbir. E, desse modo, o Rei de Ítaca pôde vencer o canto das sereias.

Desse modo, a pergunta é: o que isso tem a ver com o Direito? O Direito, sobretudo em uma perspectiva de democracia constitucional, é justamente o freio, a amarra. Daí, e as palavras são do professor Lenio Streck, que “[…] as Constituições funcionam como as correntes de Ulisses, através das quais o corpo político estabelece algumas restrições para não sucumbir ao despotismo das futuras maiorias (parlamentares ou monocráticas). Isso é de fundamental importância”. Mesmo nos momentos de desespero coletivo –o que aparece claramente no texto de Homero, sigo aqui com o professor Lenio,“[…] era necessário obedecer à razão e não às paixões temporárias ou aos interesses derivados das preferências pessoais de cada um dos indivíduos. […]. Enfim, (apelar para) mecanismos de pré-compromissos, ou de autorrestrição”. É disso que se trata, portanto.

Na alegoria presente na Odisseia, o canto das sereias é um símbolo da sedução à qual o ser humano está submetido. E as amarras ou correntes de Ulisses, o mecanismo hábil a suspendê-las. Ulisses é amarrado ao mastro do seu barco. E, mesmo ciente do poderoso cantarolar das sereias, se mantém firme e resistente aos seus efeitos. Ao ordenar aos subordinados que o amarrassem ao mastro, ele reconhece as suas fragilidades, afinal, também ele poderia cair no “canto das sereias”. Logo, o Rei de Ítaca usa de um mecanismo externo para resistir. Este mecanismo representou justamente as amarras/correntes de Ulisses, o que acabou por possibilitar a limitação do poder das sereias, bem assim a sua própria contenção. Ao ser amarrado, Ulisses contém-se, suspende os seus desejos, a sua vontade, enfim, o seu arbítrio, e, imune ao canto das sereias, se mantém fiel aos pré-compromissos firmados, seguindo, então, incorruptível ao soar dos cantos, o curso em direção ao seu recanto.

Logo, a mensagem final deste texto é: o Direito não serve para criar exceção. Ele serve para evitá-la, nos limites das suas atribuições e possibilidades. E segue, ainda segue…

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