Tratado sobre a tolerância

Em 09 de março de 1762 um francês chamado Jean Calas seria injustamente condenado e executado pela morte do seu filho, Antoine, que havia, segundo se anunciou, se convertido ao catolicismo. Jean Calas pertencia a uma família protestante (huguenote, como os franceses chamavam), sendo que a morte de Antoine teria sido motivada pela alegada conversão. O autor seria Calas. Pois o caso de Jean Calas é um dos mais singulares acontecimentos da modernidade, tendo motivado uma célebre obra escrita por um dos maiores pensadores dos nossos tempos modernos, Voltaire. A obra é o “Tratado Sobre a Tolerância”, de 1763.
O trágico acontecimento que motivou a obra de Voltaire se passou em Toulouse, uma cidade ao sul da França notabilizada pelo fervor católico. Tratava-se, o estranho caso, de religião, suicídio, parricídio. E de saber se um pai e uma mãe haviam enforcado o filho para agradar a Deus, se irmão havia enforcado irmão, se um amigo o havia feito ou, ainda, se os juízes tinham do que se recriminar por terem levado à morte um pai inocente e terem poupado os culpados.
Antoine, um dos filhos de Calas, era um homem letrado, mas demonstrava um espírito inquieto, sombrio e violento. Esse jovem, sem ter conseguido obter sucesso na advocacia, pois o exercício da profissão dependia, na época, de certificados de catolicidade, decidiu dar um fim à própria vida e confessou essa intenção a um dos seus amigos. Finalmente, um dia, o plano foi consumado. E ele seria encontrado, pouco depois, morto no interior da loja do seu pai.
Anunciado o acontecimento, a malta colocou o nariz de fora. E um fanático gritou: “Jean Calas enforcou seu próprio filho!”. O grito, repetido, tornou-se a versão oficial. Que se propagou como fogo. E se tornou um grito unânime. O que estava por trás do apupo? O fato de Calas ser protestante em uma cidade frenética pelo catolicismo. E, portanto, a intolerância (religiosa, no caso). Calas foi condenado e executado, embora inocente, não sem antes ter sofrido toda a sorte torturas. Os juízes de Touloise, influenciados pelo fanatismo da multidão, condenaram ao suplício da roda um pai inocente. E o abuso da “santa religião” produziu um crime vil.
A obra “Tratado sobre a Tolerância” é uma defesa de Calas. Calas sempre havia gritado a sua inocência. Não adiantou. Porém, em razão da obra de Voltaire, o processo logo seria reaberto. A inocência de Calas seria reconhecida post-mortem. E a família seria reabilitada. Tratou-se, então, de um majestoso libelo em defesa de Calas. E de uma forte acusação ao sistema judicial francês da época, inclusive quanto à corrupção que o permeava. Mas não só.
O “Tratado sobre a Tolerância” foi escrito em defesa dos pilares civilizatórios, contra a barbárie da intolerância, da superstição, da cegueira passional, do despotismo, dos preconceitos e da mentira dolosamente propagada, demonstrando a gravidade dos eventos que podem ser desencadeados a partir daí. Civilização contra o fanatismo. Eis a mensagem. E ela, infelizmente, ainda hoje é demasiado atual, ainda que por outros motivos ou veículos de propagação.

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