Em “O Homem sem qualidades” (1930) Robert Musil retrata a história de Ulrich, um homem que não consegue se adaptar à sociedade na qual vive. Ulrich não é um homem sem qualidades, mas um sujeito com várias qualidades, imerso, todavia, em um mundo com qualidades sem semelhantes para absorvê-las, para cultuá-las, para vive-las. Assim, é que ele se vê deslocado em um cenário marcado pelo culto à objetividade, à praticidade, como se tais atributos não fizessem parte de um conjunto de qualidades humanas, mas representassem os únicos fundamentos de uma vida boa. O ser humano seria mera engrenagem de algo, abdicando dos seus predicados singulares por um projeto ditado de cima para baixo. E a iluminação intelectual restaria sufocada pelo propagar de uma “cultura” de simplificação de massa, onde a inteligência, como George Orwell também escreveu, “cederia à pressão confortável das frases e pensamentos pré-fabricados”, sem reflexão acerca do Mundo.
Quero ir além no texto de hoje, todavia. E vou além para citar outra obra, que, particularmente, acabou prendendo bastante minha atenção. Trata-se, a esse respeito, do livro “O Homem medíocre” (1910), de autoria de um ítalo-argentino chamado Jose Ingenieros. A edição que tenho em mãos é a segunda, de 1913, republicada na Madrid de 1917. Ejá na introdução Ingenieros dá uma bela pista do que se sucederá nas páginas seguintes, a saber: “Se você é dos que orientam a proa visionária para uma estrela e estendem a asa para a sublimação inatingível, desejo de perfeição e rebelde à mediocridade, leva dentro de si o impulso misterioso de um Ideal. É o fogo sagrado, capaz de moldá-lo para ações grandiosas”.
A obra do professor da Universidade de Buenos Aires dedica-se, especialmente, ao impulso criador do ser humano, notadamente quanto à juventude. Daí que o tema central do livro é a mediocridade, que, segundo ele, se verifica em todas as profissões e classes sociais, inclusive naquelas camadas ou mesmo figuras personificadas que muito se valorizam, mas que, no fim das contas, pouco ou quase nada têm a entregar. Logo, é que uma gama de assuntos vêm à tona como argamassa de construção da obra: moral, idealismo, honestidade, vaidade, dignidade, inveja e afins. Com uma pena ferina, Ingenieros lida com vários defeitos morais, dentre eles a hipocrisia e o servilismo, denunciando-os com vigor e senso crítico. E diz mais: “os indivíduos mais desprezíveis são os predicadores de moral que não ajustam sua conduta a suas palavras”. E eu concordo. Colocando, então, a dignidade, inclusive intelectual, no alto das virtudes humanas, o autor dedicou-se cada vez mais à conquista de uma personalidade pelo trabalho e pelo estudo, fontes da liberdade e, segundo ele, no que eu aí discordo, do otimismo.
Falo, de mais a mais, e para encerrar, do que ele chama de “domesticação de caráter”, uma domesticação imposta e aceita, que não vê no outro que não faça parte dos seus alguma virtude. Contra isso, e como a ideia importante, só os seres de gênio é que podem se levantar, tudo mediante uma união entre Liberdade e Ciência. Todo ser de gênio, encerro, é a personificação suprema de um ideal. O meu? A Liberdade, a constitucionalidade, o Direito.