Constitucionalismo digital

Inspirado em algumas leituras realizadas para uma disciplina do Doutorado, trarei hoje um texto curto com algumas provocações acerca daquilo que Giovanni de Gregorio chamou de “Constitucionalismo Digital”. Na obra “Constitucionalismo Digital na Europa” (tradução livre), Gregorio apresenta um texto sobre direitos e poderes na era digital. Trata-se de uma tentativa, diz o autor, de reformular o papel das democracias constitucionais na era da sociedade da informação ou de rede, que, nos últimos vinte anos, se transformou na sociedade algorítmica, com grandes plataformas multinacionais situadas entre os Estados-Nação tradicionais e os indivíduos. O tema é atual. E envolve, na “sociedade algorítmica”, também o Brasil, em época de eleições ou não.
O constitucionalismo (ou os movimentos constitucionais, no dizer de Gomes Canotilho) surgiu tradicionalmente com o fim de limitar o poder do Estado na relação com os indivíduos. Sobrevieram, assim, os chamados direitos individuais, assentados justamente como trunfos do indivíduo contra o poder estatal. Agora, como manter esse casamento entre constitucionalismo e Estado, entre constitucionalismo e indivíduo, em uma época na qual convivemos com grandes plataformas digitais que desempenham cada vez mais um papel crítico na intersecção entre autoridade pública e ordem privada? Eis o desafio.
O problema é: o avanço do poder tecnológico sem uma regulação eficaz como contrapeso. Desde o final do século passado (décadas de 1980 e 1990) o encanto de acomodar as promessas das tecnologias digitais levou a negligenciar e esquecer o papel do constitucionalismo na proteção dos direitos fundamentais e na limitação do surgimento e consolidação de poderes irresponsáveis que abusam dos valores constitucionais. Criou-se, com isso, pode-se dizer, um limbo normativo, causado por uma reverência neoliberal, de um lado, e, de outro, por um otimismo tecnológico, atrelado à consolidação das narrativas liberais em torno da “governança da internet”. Dito de outra forma, a alegria, talvez ingênua, de ver consolidada essa nova era tecnológica fez com que pouco ou quase nada se olhasse para o poder que as plataformas digitais poderiam assumir no espaço das relações sociais. Jána esfera do poder público, isso também gerou um processo de submissão das funções públicas no ambiente digital a uma lógica do mercado por delegação ou por inércia.
Todo esse estado de coisas, então, tem contribuído para a consolidação de novos “poderes fundadores” escapando à fiscalização pública e fornecendo modelos quase constitucionais que competem com os poderes públicos. Portanto, o cenário atual é: a sociedade mudou. E os focos de poder também. É preciso, portanto, como diz Lenio Streck, “olhar o novo com os olhos do novo”. Na sociedade algorítmica, as ameaças às democracias constitucionais não vêm mais exclusivamente do poder público. Elas vêm de entes privados que governam espaços formalmente privados, mas exercendo, na prática, e sem qualquer salvaguarda, funções tradicionalmente atribuídas ao poder público.
Daí, no que concordo com o autor, a partir do momento em que há entidades privadas exercendo funções eminentemente públicas, não haverá como ignorar, sob o prisma do constitucionalismo democrático, a necessidade de limitar tais ações, filtrando-as a tal ponto que, sob as vestes de facilidades à população em geral, não venham elas, se utilizando das respectivas plataformas, suprimir direitos e liberdades individuais – como a privacidade mesma.
As democracias constitucionais poderiam injetar valores democráticos na tecnologia? A questão não seria apenas essa. A tecnologia é apenas um meio para mediar as relações de poder entre seres humanos. O cerne da questão é que por trás das tecnologias digitais, incluindo a inteligência artificial, existem os atores que definem os caracteres. Essas tecnologias não são autônomas ou neutras, mas tomam decisões sobre seres humanos com base em princípios que são principalmente moldados por outros seres humanos. E seres humanos possuem valores, visões de mundo, idiossincrasias, interesses.
Daí que o principal desafio para o direito constitucional na sociedade do algoritmo não é regular a tecnologia, mas enfrentar as ameaças advindas da ascensão de poderes privados transnacionais irresponsáveis, cujos efeitos globais produzem cada vez mais desafios às democracias Mundo afora. Trata-se, pois bem, da (urgente) necessidade de pensar limites de poder em uma sociedade em rede.

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