A lei de iniciativa popular é uma espécie de “super-lei”?

A democracia não teme, antes requer, a participação ampla do povo e de suas organizações de base no processo político e na ação governamental. E é por isso que a Constituição previu, além do direito de voto e do direito de ser votado, a possibilidade de exercício de uma democracia de feição direta, notadamente por meio da lei de iniciativa popular. Fui acusado, outrora, de elitista. Ou de propugnar o afastamento do povo dos focos de poder e de decisão. Ledo engano, todavia. O que eu propugno, aí sim, é que não vale tudo. Há limites civilizatórios. E eles devem ser respeitados. Eis a minha defesa.

O sistema constitucional brasileiro, apesar de assentar-se precipuamente em uma democracia representativa, adota clarividente nuance de participação popular. E, em matéria eleitoral, um dos exemplos, relativamente recentes, de exercício de participação popular direta em questões legislativas foi justamente a Lei Complementar n°. 135/2010 (conhecida como a lei da “Ficha Limpa”). O diploma, como se sabe, veio para modificar o texto original da Lei Complementar n°. 64/90 (Lei das Inelegibilidades), trazendo novas causas de inelegibilidade, novos parâmetros e novos prazos.

O advento da lei da “Ficha-Limpa” denota um exemplo claro do que representa o sistema jurídico-político brasileiro, que vem pregar mecanismos de participação direta do povo nos assuntos de Estado, não obstante a sua matriz repouse sobre a participação indireta (representação).   Logo, diante dos conceitos relativos às modalidades de democracia direta, indireta e semidireta, pode-se dizer, razoavelmente, e com exemplos, que o Brasil optou por adotar um sistema relativamente misto, ou seja, de representação ou representatividade política, mas com nuance de participação direta do povo nos assuntos do Estado, ainda que tal participação, na espécie, não se afigure como um reclame intensamente praticado. Nada de discordância aí. Salvo pelo produto citado, a lei em voga, da qual sou crítico há tempos, dela, do seu texto e dos fundamentos decisórios que legitimaram a sua torta constitucionalidade.

Ora, não podemos deixar de salientarque qualquer fruto da participação direta do povo nas políticas do Estado, como a (lei de) iniciativa popular, encontra limites na Constituição Federal, o parâmetro normativo que constitui a possibilidade dessa participação. Não se trata, então, a lei de iniciativa popular, tal como a lei da “ficha-limpa”, de uma espécie de super-lei. A máxima “Vox Populi, Vox Dei” não merece ser levada à risca, pelo contrário. O povo, a população, a sociedade, se submetem à Constituição, justamente porque ela é um trunfo contra a maioria, sobretudo àquelas maiorias de ocasião. E é sempre necessário ter muito cuidado com o poder das maiorias, afinal, construindo-se como tais, elas, não raro, podem descambar para um agir com pretensões tirânicas, disruptivas, de efeito manada, procurando subverter, inclusive, a normatividade que atribui a elas próprias a condição de participação, no todo ou em alguma parte específica do pacto fundante.

James Madison, Alexis de Tocqueville e Rui Barbosa já dissertaram sobre isso, falando, todos, acerca dos perigos de uma tirania da maioria. No que concordo plenamente. O povo não constitui uma grandeza mística. Se a escolha dos representantes mediante voto popular não é sinônimo de um regime democrático institucionalizado, também o exercício de prerrogativas populares, para além do voto, não é garantia de democracia forte e saudável, tampouco adequada, sob o prisma da constitucionalidade vigorante.

A lei de iniciativa popular, por um lado, é uma lei como qualquer outra, passando, inclusive, pelo mesmo processo legislativo perante o Parlamento. Por outro lado, de mais a mais, a lei de iniciativa popular não é e não deve ser uma carta na manga para a promoção de backlash.  A democracia, o alerta demasiado oportuno é de Daniel Innerarity, “deve temer mais a seus falsos amigos que seus verdadeiros inimigos”.

ORIGINALMENTE ESTE CONTEÚDO FOI PUBLICADO NO JORNAL IMPRESSO*

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