Às voltas com o constitucionalismo digital

Passadas as eleições de 2022, precisamos voltar a falar acerca das plataformas digitais. Dados expostos pelo TSE indicam que houve um aumento de 1.671% no volume de denúncias de desinformação encaminhadas às plataformas digitais em comparação com as Eleições 2020. Além disso, houve a necessidade de 130 novos esclarecimentos e desmentidos sobre casos de desinformação em relação à lisura do processo eleitoral. Segundo o TSE, também cresceram os episódios de violência política via redes sociais, que aumentou de 436% no comparativo com 2018. E, antes que alguém salte para apontar o dedo ao outro, saibamos que ninguém se salvou. Não há “mocinhos” neste “filme”.
Inspirado em algumas leituras realizadas para uma disciplina do Doutorado, trago hoje um texto curto com algumas provocações acerca daquilo que Giovanni de Gregorio chamou de “Constitucionalismo Digital”. Na obra “Constitucionalismo Digital na Europa” (tradução livre), Gregorio apresenta um texto sobre direitos e poderes na era digital. Trata-se de uma tentativa, diz o autor, de reformular o papel das democracias constitucionais na era da sociedade da informação ou de rede, que, nos últimos vinte anos, se transformou na sociedade algorítmica, com grandes plataformas multinacionais situadas entre os Estados-Nação tradicionais e os indivíduos. O tema é atual. E envolve, na “sociedade algorítmica”, também o Brasil, em época de eleições ou não.
O constitucionalismo (ou os movimentos constitucionais, no dizer de Gomes Canotilho) surgiu tradicionalmente com o fim de limitar o poder do Estado na relação com os indivíduos. Sobrevieram, assim, os chamados direitos individuais, assentados justamente como trunfos do indivíduo contra o poder estatal.Três grandes escolas despontaram como paradigmáticas nesse contexto: Inglaterra, Estados Unidos e França, cada qual a seu modo e com suas formas de conformação. No âmago destas tradições, todavia, o pilar filosófico do iluminismo e a consagração, por um modelo historicista ou por meio de textos escritos, a partir da política e do Direito, de um rol de direitos de cunho negativo (consagrações de não fazer), que não poderiam ser atacados pelo agir do poder constituído, estiveram presentes.
O problema é: o avanço do poder tecnológico sem uma regulação eficaz como contrapeso. Desde o final do século passado (décadas de 1980 e 1990) o encanto de acomodar as promessas das tecnologias digitais levou a negligenciar e esquecer o papel do constitucionalismo na proteção dos direitos fundamentais e na limitação do surgimento e consolidação de poderes irresponsáveis que abusam dos valores constitucionais. Criou-se, com isso, pode-se dizer, um limbo normativo, causado por uma reverência neoliberal, de um lado, e, de outro, por um otimismo tecnológico, atrelado à consolidação das narrativas liberais em torno da “governança da internet”. Dito de outra forma, a alegria, talvez ingênua, de ver consolidada essa nova era tecnológica fez com que pouco ou quase nada se olhasse para o poder que as plataformas digitais poderiam assumir no espaço das relações sociais. Jána esfera do poder público, isso também gerou um processo de submissão das funções públicas no ambiente digital a uma lógica do mercado por delegação ou por inércia.
Todo esse estado de coisas, então, tem contribuído para a consolidação de novos “poderes fundadores” escapando à fiscalização pública e fornecendo modelos quase constitucionais que competem com os poderes públicos. E o caso das plataformas digitais operando em uma base transnacional é o emblema paradigmático da acusação feita pelo autor.O cenário atual é: a sociedade mudou. E os focos de poder também. Não podemos, portanto, seguir olhando o novo com os olhos do velho.
Ocorre que, na sociedade algorítmica, as ameaças às democracias constitucionais não vêm mais exclusivamente do poder público. Elas vêm de entes privados que governam espaços formalmente privados, mas exercendo, na prática, e sem qualquer salvaguarda, funções tradicionalmente atribuídas ao poder público.
O constitucionalismo digital virá exigir, portanto, o desenvolvimento de novas formas de limitar abusos de poder em um espaço complexo que inclui governos, empresas e organizações da sociedade civil. Trata-se, pois bem, da necessidade de pensar limites de poder em uma sociedade em rede. E para ontem.

Comentários do Facebook