O Processo

A coluna de hoje é sobre livros que mudaram a minha vida. Um deles, particularmente. Recentemente concedi uma entrevista a um veículo de comunicação de Bagé, onde fui perguntado pela entrevistadora acerca dos livros que haviam mudado a minha vida – que livros mudaram a tua vida, Guilherme? Eis a pergunta. Refleti e indiquei alguns. Dentre as obras indicadas, todavia, uma é a mais especial para mim, qual seja: “O Processo”, de Franz Kafka (que não tem nada a ver com o quitute árabe, ao contrário do que anunciou outrora um desavisado Ministroda Educação… que feio, “Excelência”!).

Kafka escreveu, sobretudo, contos e romances, além de diários e uma farta correspondência. É autor de “A Metamorfose”, “Carta ao pai” e “Colônia penal”, para além de vários outros livros. O autor nos releva, basicamente, a fragilidade do mundo moderno, as angústias do ser humano imerso nesta quadra histórica e o nosso processo de desumanização. Os seus personagens, como referiuMarcelo Backes, “são vítimas de um enigma insolúvel – a própria vida”. E essa marca estará muito presente em “O Processo”. Mas ainda há mais. E bem mais.

Em 1999, em parceria com a Fnac, o jornal Le Monde promoveu uma sondagem para compor uma lista das duzentas maiores obras do século XX. “O estrangeiro”, de Albert Camus, foi a primeira da lista. “O Processo”, a segunda. Com este livro, Camus assinalou, “somos levados ao limite da consciência humana. Tudo nesta obra é verdadeiramente essencial”. Já para George Steiner, este romance “adquiriu um status que vai além do clássico…”. Kafka, com a sua obra, é tão grande que se tornou adjetivo, sendo que o termo “kafkiano” vem designar, especialmente no mundo da vida no qual estou inserido, o da advocacia, algo autoritário, ilegal, nada transparente, seguido mediante atropelos. E há exemplos, não?

“O Processo” conta, em suma, o drama vivido pela personagem principal, Josef K., um funcionário de um banco que é detido de maneira súbita e estranha, justamente em seu aniversário de trinta anos. A partir daí o calvário da personagem se inicia, sendo que ele, capturado sem razão aparente e interrogado, acaba por ser acusado de algo que desconhece. O contexto é absurdo!

Uma detenção sem qualquer motivo apresentado. Um interrogatório acerca de um fato desconhecido pelo interrogado. Uma acusação cujo teor não é entregue ao acusado. Uma lei desconhecida. E uma Corte anônima. Para que fique claro: Josef K. nunca é informado acerca dos motivos da detenção, do interrogatório e da acusação. E essa violência pode muito bem ser sintetizada por uma passagem da obra, a saber: Josef K., no auge do sofrimento, sustenta a sua inocência. E a autoridade estatal pergunta: “Inocente de quê?”. Pois é, o Estado sequer apresentou a ele a acusação promovida pelo mesmo Estado! E a pergunta é: como me defender de algo que desconheço?! O processo movido contra Josef K, eis a questão, é a negação de marcos civilizatórios que compõem a modernidade, a começar pelo devido processo legal em sua amplitude.

Agora, voltando ao início, por que a obra de Kafka mudou a minha vida? Este livro me foi dado de presente pelo pai, também advogado, Elton Barcelos, lá em idos de 2010. Eu estava na graduação em Direito. Li o livro naquela época mesmo. Depois reli.

Josef K. não teve defesa, tampouco sabia do que estava sendo acusado. Fiquei angustiado na época. E indignado. Pronto! Eu realmente iria ser advogado. E, dali em diante, não tive nenhuma dúvida disso. Kafka escreveu em seu diário: “Um livro tem de ser o machado para o mar congelado do nosso interior”. Nesse caso, o mar congelado do meu interior foi rebentado num golpe só. E o resto, enfim, é história… ou tem sido, página depois de página.

ORIGINALMENTE ESTE CONTEÚDO FOI PUBLICADO NO JORNAL IMPRESSO*

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