Às voltas com Shakespeare: de como o passado pode iluminar o presente

O ano de 2022, que agora vai chegando ao fim, foi relevante. Vários acontecimentos de envergadura marcaram o tempo corrente, como a Guerra na Ucrânia, o passamento da Rainha Elizabeth II e a assunção de Charles III ao trono britânico, as eleições gerais brasileiras, cuja diplomação dos eleitos deve se dar até o dia 19 de dezembro, as eleições de meio de mandato (midterm elections) norte-americanas, a Copa do Mundo que se avizinha etc. Vivemos, penso, um grande ponto de inflexão. E, para onde irá a civilização, eu realmente não sei. Não quero falar do futuro mesmo, mas do passado. O mesmo passado que pode vir para iluminar o presente.
Pois o mesmo ano de 2022 foi marcado pelos quatrocentos e seis anos da morte de William Shakespeare (1554-1616), o maior escritor de língua inglesa e um dos dramaturgos mais influentes de todos os tempos. O Bardo (“The Bard”)deixou aos pósteros um legado estimado de trinta e oito peças, cento e cinquenta e quatro sonetos, dois poemas longos e versos esparsos, com enredos ricos de conteúdo e mensagens inesquecíveis, que até hoje frutificam no teatro, na televisão, no cinema e na literatura em geral. Seu nome jamais seria esquecido. De minha parte, como que a anunciar um pouco de luz na escuridão, as “Obras de Completas de William Shakespeare” repousam bem à nossa frente em uma estante enfeitada de escritório de advocacia. Falávamos sobre ele ontem. Falamos sobre ele hoje. E seguiremos amanhã e depois de amanhã. Shakespeare, pode-se dizer, foi um moderno ou, mais do que isso, um dos grandes fundadores do pensamento moderno ou mesmo da Modernidade.
A Modernidade, conforme já escrevemos aqui, designa um movimento de ruptura e retomada. A ruptura se deu em relação aos valores medievais, sustentados que eram na crença em uma ordem universal regida pelo poder divino, independentemente dos desígnios humanos. Já a retomada ficou materializada a partir do resgate dos modelos da antiguidade greco-romana, com a valorização do ser humano em oposição aos ensinamentos teológicos do medievo. Tratou-se, sobretudo com o Renascimento, de uma mudança de perspectiva que irradiaria efeitos nos séculos vindouros, de modo a consagrar o antropocentrismo com guia, assim como um novo culto às artes, à literatura e às ciências. A fonte de legitimidade no exercício do poder também sofreria mudanças. E é aí que a pena de Shakespeare adentraria, isto é, em um período de intensos questionamentos e de disputas políticas.
Maquiavel, com “O Príncipe”, apresentou-nos verdadeiro tratado sobre a governança. Bodin, na obra “Seis Livros da República”, tratou da soberania, ainda que sem perquirir à fundo a sua fonte. Hobbes, em seu “Leviatã”, que fora escrito logo após a Guerra Civil inglesa, buscou justificar a existência do Estado e a figura do Monarca. Shakespeare, a seu turno, embora rotineiramente ignoremos isto, tratou dos mesmos temas, isto é, de soberania, autoridade e indivíduo, questionando, inclusive, algumas práticas nossas, apresentando tensões muito semelhantes às dos tempos recentes – “como são tolos esses mortais!”, eis a crítica afirmação do personagem Puck em “Sonhos de uma Noite de Verão”.
Vários personagens de Shakespeare estão em busca de um sentido para a vida, o que os afasta da noção teológica de um Paraíso após a passagem – existe algum sentido para a vida ou ela nada mais é do que “um conto cheio de bulha e fúria, dito por um louco, significando coisa alguma?” (“Macbeth”); ou “O Homem é só isso?” (“Rei Lear”). Em outras peças sobrevém as tensões entre uma ordem estabelecida e os desejos individuais de autodeterminação –“Contra todas as leis da natureza” (“Otelo”). E noutras a questão da autoridade política salta aos olhos, como também em Macbeth – pode um Rei, como Duncan, pouco astuto que era, governar em prol de todos? Já o fato de Macbeth ser mais apto politicamente legitimaria o regicídio, verdadeiro golpe de Estado? Não, não justificaria. E a peça traz de modo muito contundente a sanção pela usurpação: Macbeth, que se tornara um tirano, se depara com o “Bosque de Birnam” se erguendo contra si. E com o reino em chamas.
Pois refletindo cá sobre a legitimidade no exercício do poder só posso alcançar, a partir da pena de Shakespeare, que a tentativa de quebra-la gera o caos. E que, por essas e outras, a legitimidade política, que hoje se impõe via eleições livres, periódicas e autênticas, deve ser respeitada. Que o passado, e as lições dele, ilumine, enfim, o nosso presente, para, quiçá, garantir o futuro.

Comentários do Facebook