De como precisamos falar urgentemente acerca do nosso regime de inelegibilidades

Vida pregressa, moralidade para o exercício do mandato eletivo, irretroatividade das leis restritivas de direitos, presunção de inocência. Todos esses termos, institutos e discussões permearam os debates inerentes aos regimes de inelegibilidade estabelecidos no Brasil em idos de 2010. Veio a chamada “Lei da Ficha-Limpa” à tona, cuja eficácia seria posta a partir do pleito municipal de 2012. Pois bem. Contudo, esse debate, observados os seus termos, sobretudo, foi “privilégio” desta nossa época? A pergunta está aqui. Não, eis a resposta. E ele também esteve presente, a partir de uma espécie de espelho retroativo, no período da última ditadura militar imposta no país, a de 1964 em diante. Fala-se pouco acerca disso. E o silêncio é eloquente, retumbante. Para não dizer condenável.

O primeiro diploma legislativo de inelegibilidades desde 1934 recebeu o número imediatamente posterior ao do segundo Código Eleitoral da história brasileira, a lei n° 4.738, de 14 de julho de 1965. E veio para estabelecer inelegibilidades permanentes, observada a vida pregressa do candidato potencial, conceito que é bem conhecido aos contemporâneos.

O ponto alto da lei em comento era o seguinte, tal e qual posto em sua exposição de motivos: a nova lei de inelegibilidades do regime de exceção buscaria resguardar a “probidade administrativa” e a “democracia liberal” contra a “subversão” e a influência dos “abusos de poder econômico e estatal” – novamente desponta curiosa a similitude com a linguagem utilizada hoje pelo legislador complementar e, não bastasse, pelo constituinte derivado, a partir da Emenda de Revisão nº 04/94. Tratava-se claramente de um projeto direcionado, casuísta, expost-factum e de feição retroativa.

Apesar destes tantos pesares, contudo, as hipóteses de inelegibilidade provenientes de condenações trouxeram texto mais condizente com outro princípio constitucional de valor inegociável: a presunção de inocência – isso mesmo. Sobre o tema, foram duas as hipóteses, provenientes de processos acusatórios ou sancionatórios. E, em ambas, a irrecorribilidade da decisão estava posta – em virtude de sentença judiciária transitada em julgado ou por sentença judiciária irrecorrível.

Tanto o artigo 148 da Constituição de 1967 quanto o artigo 148 da Constituição outorgada de 1969 encomendavam à lei complementar a fixação de casos de inelegibilidade. Esta última o fazia com o objeto de preservar “o regime democrático”, “a probidade administrativa”, “a moralidade para o exercício do mandato, levada em consideração a vida pregressa do candidato”, “a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência ou o abuso do exercício de função, cargo ou empregos públicos da administração direta ou indireta” – que passara a ser expressamente incluída – “ou do poder econômico”. Os ministros militares editaram, porém, um Decreto-Lei (DL), que recebeu o número de 1.063, nove dias antes da entrada em vigor da Carta de 1969.

Perceba-se a ênfase dada pelo texto das “Constituições” ditatoriais à proteção da “probidade” e da “moralidade para o exercício do cargo eletivo”, além da “normalidade e da legitimidade das eleições contra o abuso”. Registre-se para que não se perca a informação: notadamente quanto à última, a normativa se deu ou foi imposta em plena vigência do Ato Institucional n° 05 (!).

Causa espécie, assim sendo, que sigamos atualmente mantendo esse tipo de modelo calcado em abstratas referências à probidade e à moralidade, cada vez mais expansionista quanto às restrições aos direitos políticos passivos, reproduzindo, para tanto, agir legislativo não apenas de um tempo de exceção, mas de uma exceção alicerçada em um ato institucional que fechou o Parlamento, cassou direitos políticos e mandatos eletivos, suspendeu o Habeas Corpus e por aí em diante. Eis a gênese linguística do atual §9º do artigo 14 da CF, proveniente de uma Emenda de Revisão. E a “Lei da Ficha-Limpa” é filha dele. Por que, eis a pergunta, nos apegamos, hoje, a paradigmas de um regime de exceção em matéria de inelegibilidades e, portanto, para promover a restrição do direito fundamental de ser votado? A pensar… voltaremos logo com o tema.

ORIGINALMENTE ESTE CONTEÚDO FOI PUBLICADO NO JORNAL IMPRESSO*

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