Democracia, respeito mútuo e “forbearence”

Eleitores (as) foram às urnas em todo o Brasil para escolher, para os próximos quatro anos, Presidente da República, Governadores, Senadores, Deputados Federais, Estaduais e Distritais. O evento, realizado em dois turnos em algumas hipóteses (Presidente da República e alguns Governos de Estados), marcou, no ano de 2022, o exercício da cidadania em sua feição eleitoral.
A eleição transcorreu. Houve vencedores. E houve vencidos. Sempre é assim. Para os vencedores, uma oposição vigilante ali adiante. E, para os vencidos, logo haverá outra eleição. A única certeza da vida é que ela está em constante modificação. Portanto, que trabalhem para a disputa do pleito vindouro. É assim que funciona o jogo. E é assim que ele deve ser. No mais, quem do jogo aceita participar, deve respeitá-lo. Respeitar as suas regras. Assim como o resultado da contenda.
Não escreverei neste espaço, como a nossa prática demonstra, sobre candidatos, eleitos ou não, vitoriosos ou não. Tampouco farei prognósticos acerca do que ocorrerá daqui em diante. A ver…
Escreverei, por outro lado, tomando como horizonte a reverenciada obra “Democracia para Quem Não Acredita”, de Georges Abboud, sobre uma necessária imbricação entre os seguintes temas: democracia, respeito mútuo e “forbearence”. A questão, como diz o autor, é que nem mesmo a melhor das Constituições poderia garantir, por si só, a democracia contra o autoritarismo. É evidente, segue Georges, que normas constitucionais escritas e a existências de “instituições-árbitro” são importantes. Porém, sua longevidade e eficiência são potencializadas quando presentes determinadas regras implícitas do jogo. Essas regras servirão, pois, como “guard-rails” (proteções) da democracia. E elas são duas.
A primeira é a tolerância mútua. E ela significa que, enquanto os nossos adversários observarem as regras constitucionais, “devemos aceitar que tenham igual direito de existir, disputar o poder e governar” (Abboud). Podemos, então, discordar ou até desgostar acidamente dos nossos adversários, mas devemos aceita-los como legítimos, reconhecendo que eles, assim como nós, têm o direito de se posicionar e de buscar a ocupação dos cargos eletivos mediante eleições. Essa tolerância mútua estará suplantada se enxergarmos o adversário como inimigo. Enxergando-o como inimigo, deixaremos de considerar válido oferecer a ele as regras do jogo democrático. Se assim for o caso, ficará muito difícil manter o regime democrático, afinal, se o adversário é visto como inimigo e, portanto, como um grande perigo, quaisquer artimanhas, inclusive medidas despóticas, passariam a estar legitimadas. Os freios desapareceriam, notadamente se esse pensamento alcançasse uma vocalização de massa.
A segunda é o que, em inglês, se chama “forbearence” (abstenção). Essa abstenção é tão essencial para o regime democrático quanto o primeiro “guard-rail”. E ela consiste, basicamente, “no ato de se autoconter no exercício de um direito ou poder legalmente estatuído” (Abboud). Para que fique mais claro: quando a noção de “forbearence” é forte numa democracia, políticos evitam determinadas ações, mesmo que tecnicamente dentro das suas prerrogativas, se percebem que podem causar danos à estrutura do sistema. Trata-se, então, de uma autocontenção do agente, de modo que, em determinadas circunstâncias, ele deixe de exercer um direito ou uma prerrogativa sua, pois, assim não fosse, o aludido exercício causaria ou poderia causar fissuras no tecido do regime. Trata-se, enfim, de um sinal de maturidade institucional.
E o mais curioso é que esta ideia surgiu em um contexto de monarquia absolutista, e não em um ambiente democrático, portanto. E o autor explica: “muito embora os reis pudessem, dada sua legitimidade divina, agir como bem entendessem, buscavam portar-se e comportar-se com parcimônia. Se utilizassem sempre seu poder absoluto para fazer tudo o quanto pretendessem, eram grandes as chances de que o sistema colapsasse”. Se as monarquias, mesmo absolutistas, exigiam isso, que dirá a democracia constitucional.
Eis, então, que os dois “guard-rails” citados aqui se complementam: os políticos tendem a se autoconter quando se aceitam enquanto rivais legítimos, ao tempo em que é menos provável que violem regras para afastar os adversários do poder. E é isso, no fim das contas, o que se espera na democracia.

* Originalmente este conteúdo foi publicado no jornal impresso

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