Eterna vigilância

Pensadores jurídicos muito deram de bom à civilização, tendo ocupado local de destaque em muitos dos acontecimentos mais relevantes da história, não raro protegendo a humanidade do seu maior inimigo: ela mesma. A modernidade mesmo foi construída com lastro em pensadores do Direito, ainda que alguns deles não tivessem formação jurídica propriamente dita, sendo que institutos como monarquia limitada, em contraposição ao absolutismo, supremacia parlamentar e controle de constitucionalidade, dentre outros – como lei superior e direitos individuais – transitam por aí.

Diferente dos demais animais, sigo com Castro Neves, o ser humano “é dotado da capacidade de pensar de forma sofisticada e de externar suas razões”. Conseguimos, pois, “formar ideias complexas e defendê-las”, seja por intermédio da palavra falada, seja por meio da palavra escrita – e os livros estão aí para demonstrar. Da mesma forma que um pode ter talento para pintar, para fazer contas ou para tocar um instrumento, há aqueles com eloquência e sensibilidade para expor suas ideias. Ou, então, aqueles que pelo esforço logram essa aptidão (estudo e dedicação muitas vezes superam a natureza). E a eloquência, como dito, não é apenas uma virtude do verbo explorado a partir das cordas vocais, mas, de igual modo, do escrito, proveniente da união entre intelecto, papel e tinta.

Ocorre que os pensadores, artífices que são do fenômeno jurídico, nem sempre transitam por essa fenomenologia imbuídos do intuito de defende-la ou de aprimorá-la. Há momentos de declínio da intelectualidade e, pode-se dizer, de declínio da civilidade a partir daí. Uma coisa imbricada com a outra. Vejam, por exemplo, que o ápice da exceção no século XX, que foi o regime de Hitler, contou com juristas vários de modo a dar suportes àqueles acontecimentos, alguns deles proeminentes. Hitler mesmo teria dito, em tom de indagação condescendente: “Que teríamos feito sem os juristas alemães?”.

Citemos outro exemplo, ainda no âmbito do século XX: a União Soviética. O regime soviético, não obstante os atos de exceção praticados ao longo do percurso até a queda, em 1991, também contou com juristas imbuídos do seu respaldo. A esse respeito, o maior, quiçá, foi Evgeni Bronislávovich Pachukanis, autor de várias obras jurídicas, dentre as quais o seu “Teoria Geral do Direito e marxismo”. O autor, inclusive, chegou a criticar fortemente o autor da “Teoria Pura do Direito” e pai do controle de constitucionalidade em sua versão europeia, o austríaco Hans Kelsen – as ideias de Kelsen, para ele, seriam vazias e inúteis no mundo real. Isso sem falar na Stasi, que, travestida de berço de intelectuais, munidos eles de vários títulos acadêmicos de pompa, atuava, por seus ilustrados membros, como polícia secreta na Alemanha Oriental.

No Brasil isso também ocorreu, com Francisco Campos ponteando juridicamente duas ditaduras: a do Estado Novo e a de 1964, guardadas, evidentemente, as distinções de tempo, contexto, atores, dinâmica e ferocidade existentes.

Mesmo em tempos democráticos, aliás, é possível que haja o recrudescimento do aparato persecutório e punitivo, impulsionado, como sói ocorrer, por medidas invasivas, típicas de regimes de exceção, que, a despeito das respectivas inconstitucionalidades, se tornam legitimadas argumentativamente com base nos fins perquiridos, a depender do momento em que se dão. E é dos Estados Unidos da América que falamos aqui, da chamada “guerra contra o terror” e de “Guantánamo” – garantias suspensas, prisões clandestinas, tribunais especiais ou de exceção, julgamentos sem publicidade, tortura. Poderíamos, aliás, retroceder no tempo, voltando a idos de 1940 para lembrar do caso Korematsu e do alerta emitido pelo Justice Black, ao ter denunciado, em seu voto, todos os problemas envolvidos “na avaliação judicial da legalidade de ordens decretadas em tempos de crise” (a Corte manteve, por maioria, a constitucionalidade do ato que autorizava a segregação de cidadãos americanos, com ascendência japonesa, em campos no interior do país).

A mensagem dessa coluna, no fim das contas, é: sejamos vigilantes. Sem mais…

ORIGINALMENTE ESTE CONTEÚDO FOI PUBLICADO NO JORNAL IMPRESSO*

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