O condestável da democracia brasileira

“Sou Gaspar Silveira Martins, filho da heroica província do Rio Grande do Sul. Vim da vitória nas urnas e marcho para o futuro, para a prosperidade e para o engrandecimento do meu país. E o homem que Vossa Excelência tem a ousadia de dizer que não conhece, é aquele que se fez conhecido no manejo da pena e da palavra”. O fragmento desse discurso do “Rei do Rio Grande” se encontra consignado em uma matéria de jornal que está colada no interior da capa de um livro clássico que adquiri num sebo qualquer, creio que na famosa “Rua da Ladeira”, situada no Centro Histórico da capital dos gaúchos. Gosto dos clássicos. Ainda mais se forem usados. Eles têm um charme especial. Já a matéria – de um jornal de Porto Alegre cujo nome desconheço – data de 03 de fevereiro de 1944. O conteúdo foi um achado, fruto de um inquestionável golpe de sorte. E o livro a que me refiro é: “Gaspar Silveira Martins: o condestável da democracia brasileira”, de autoria de Paulino Jacques, publicado pela Zelio Valverde Livraria e Editora, então situada na histórica “Travessa do Ouvidor”, no Rio de Janeiro.

Não para por aí. Na folha de rosto há um sutil escrito, feito à lápis, sabe-se lá por quem – com certeza por um dos proprietários da obra, que a teve em algum momento do caminho, e cuja identidade, provavelmente, nunca conhecerei. O registro diz assim: “Lidos os discursos de Silveira, perdem muito as suas significações. Falta-lhes a presença do tribuno, o efeito da voz, da dicção, do ritmo e do gesto”.  O autor do manuscrito acertou. Estava inspirado. Era alguém, mulher ou homem, culto. E com uma sensibilidade acurada. Outro achado, outro golpe de sorte. Sigo, então. E parto ao livro.

Vindo à luz, 04 de agosto de 1834, na Serra do Aceguá, no município de Bagé, em pleno inverno sulino, quando a geada branqueia os campos verdes e paralisa os riachos pacienciosos, Gaspar Silveira Martins nasceu sob o signo da austeridade e da inclemência. Contrastando, porém, com a natureza, o homem era, a esse tempo, todo calor de entusiasmo e paixão política. Soube, como diz o autor, “encarnar a alma heroica das coxilhas, desde a flora luxuriosa à fauna singular, pois, quanto ao homem, era, ele mesmo, a um só tempo, o índio quebra das coxilhas e o cidadão laborioso da cidade, os quais o aplaudiam, em delírio, junto com as flores odorosas e as aves das grandes alturas, como se a natureza inteira louvasse, em comunhão com os céus, a sua própria grandeza”.

Esta obra traz um rico percurso pela história do tribuno, do nascimento à sua unção no panteão dos grandes da história desta Nação, restando dividida em dezessete capítulos. Trata da sua carreira como juiz. Das suas defesas em prol da democracia. Dele próprio derrubando gigantes a partir das tribunas parlamentares. Da questão religiosa, da questão militar, da questão escravagista e das suas contundentes falas na sustentação do estado laico, da submissão do poder das armas ao poder civil e das suas denúncias quanto à desumanidade da escravidão. Lida com a queda da monarquia e com o desterro do estadista. Do seu retorno e do 1º Congresso Federalista realizado em Bagé. Da sua peleja contra Júlio de Castilhos e de como “as ideias não são metais que se fundem”. Registra o extenso rol de serviços prestados à pátria. E apresenta uma bela peroração entregue à sua memória.

Em 1872 o “Demóstenes dos Pampas” discursou na Câmara dos Deputados e disse: “Os Homens morrem, as dinastias desaparecem num turbilhão; as nações vivem séculos e ruem; mas a liberdade é imperecível como a alma humana”. A liberdade é, sim, imperecível. Assim como a alma humana o é. Mas não só. Também é imperecível a história, a travessia, notadamente quando ela ocupada com feitos, grandes feitos, assim como ocorreu com Silveira Martins.

Na tenacidade com que ele abraçava suas ideias, para triunfar ou cair, muitos viam um sinal de fanatismo ou orgulho. Não era isto senão uma prova do equilíbrio de sua inteligência, como consignado no prefácio escrito por Costa Rego. Ímpar nos seus contornos, pela sua inteligência, pela sua cultura, pelo seu caráter, pelos seus sentimentos, pelo seu culto indormido por tudo quanto seja direito, justiça e liberdade. É dessa figura que falamos, um gigante, aquele que se levantou como o pó da terra.

 

ORIGINALMENTE ESTE CONTEÚDO FOI PUBLICADO NO JORNAL IMPRESSO*

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