O DNA da Justiça Eleitoral

O ano de 2022consagraalgumas datas comemorativas que denotam importantes acontecimentos da história da República brasileira, como os noventa anos do primeiro Código Eleitoral e da criação da Justiça Eleitoral. Pode-se dizer, a esse respeito, que a história da República Velha foi a história da fraude eleitoral nos quatro cantos do país, a história do clientelismo. Em interessante passagem de uma entrevista prestada por Silveira Martins ao jornalista norte-americano A. Bierce, indagado por este se não havia fraudes e clientelismo no Império, aquele, o mesmo que fora chamado de “Rei do Rio Grande”, respondeu com sua peculiar ironia: “No Império, a fraude e o clientelismo ao menos estavam democratizados. Agorahá monopólio!”. Estávamos longe do ideal, eis a verdade. Falaremos hoje, então, acerca da raiz da Justiça Eleitoral no Brasil, ou seja, das razões que levaram a sua criação e da importância dela no arcabouço institucional brasileiro.
A Justiça Eleitoral surgiu historicamente no Brasil em um contexto marcado por fraudes eleitorais de toda ordem, especialmente vinculadas ao establishment político dominante até então. Nesse contexto, fenômenos históricos como o “coronelismo” e o “voto de cabresto”, assim como o caráter patrimonialista-estamental característico da formação e evolução do Estado brasileiro, se encontram intimamente vinculados à criação e à consolidação deste ramo especializado do Poder Judiciário nacional. Há, sobre isso, livros maravilhosos que narram a realidade, como “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, “Os donos do poder”, de Raymundo Faoro, e “Coronelismo, enxada e voto”, de Victor Nunes Leal, dentre outros. A Justiça Eleitoral brasileira seria pensada a partir daí, sendo materializada, desde 1932, como uma instituição apartada das forças políticas dominantes, e, portanto, distante e imparcial, incumbida de gerir ou administrar os processos eleitorais, zelando para que estes transcorressem com isonomia, transparência, tranquilidade e legitimidade. As competências foram aumentando, é claro. Mas a gênese está aí: administrar, com equidistância, os processos de escolha da representação política.
O que aqui afirmo é corroborado pelo texto do anteprojeto do Código Eleitoral de 32, de cuja comissão elaboradora participaram João G. da Rocha, Assis Brasil e Mario Pinto Serva. Eles entendiam, já em texto datado de 1929, ser correto entregar aos magistrados o alistamento permanente e a participação desses nas mesas eleitorais e juntas apuradoras, além de também atribuir aos tribunais judiciários o processo e a decisão das contestações em que se levantassem questões sobre os pleitos. O mesmo Assis Brasil escreveu em 1925 no Manifesto da Aliança Libertadora do Rio Grande do Sul: “Ninguém tem certeza de ser alistado eleitor; ninguém tem certeza de votar, se porventura foi alistado; ninguém tem certeza de que lhe contém o voto, se porventura votou; ninguém tem certeza de que esse voto, mesmo depois de contado, seja respeitado na apuração da apuração, no chamado terceiro escrutínio, que é arbitrária e descaradamente exercido pelo déspota substantivo, ou pelos déspotas adjetivos, conforme o caso for da representação nacional ou das locais”. Nesse caminho é que veio à tona a Justiça Eleitoral, tudo para harmonizar a relação entre poder político e democracia, os poderes federais e estaduais, partidos políticos e sociedade, sendo responsável, primariamente, pela administração dos pleitos, de modo a fazer valer que o voto dado será o voto devidamente computado.
Trata-se, a Justiça Eleitoral, de uma instituição edificada com o fito de quebrar a marca patrimonialista e estamental cristalizada na estrutura do Estado brasileiro desde a sua aurora e, de mais a mais, nas eleições para a escolha dos representantes políticos da Nação, considerada a ocupação dos cargos públicos eletivos por intermédio deste mecanismo. A administração dos processos eleitorais deve sim ser creditada a quem não participa da contenda. De igual modo, dentro do sistema eleitoral, é importante que medidas fiscalizatórias sejam previstas e implantadas para coibir irregularidades. E é de suma relevância o estabelecimento de corpos eleitorais como meios de controle para a consolidação da democracia, isto é, como formas de organizar e nortear aqueles que são responsáveis por tomar decisões que dizem respeito e afetam a vida da sociedade: o poder político. Era assim antes de 32, mesmo que nada existisse. Foi assim após 32. E segue sendo assim nos dias atuais.

* Originalmente este conteúdo foi publicado no jornal impresso

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