A pergunta que dá título à coluna desta semana parece banal à primeira vista. Mas, não o é. E a razão para a afirmação é: vivemos, não raro, no Brasil, uma espécie de “anemia significativa”, sendo que o termo “Estado Democrático de Direito” é ou pode ser utilizado por quem sequer mesmo tem noção do que ele representa. Quem nunca viu, por exemplo, variantes políticas distintas bradando em discursos pelo “respeito ao nosso Estado Democrático de Direito”? As situações eram as mais diversas. E havia conflitos concretos entre uma e outra versão. Mas ambas, mesmo assim, porquanto superficiais, quiçá, se afiguravam como defensoras do “Estado Democrático…”. Exemplos não faltam. E a chance de nenhuma dessas posições tê-lo defendido é grande…
Retorno, então, ao início: o que é isto, o Estado Democrático de Direito? Para começar a responder a pergunta norteadora do texto é indispensável que voltemos ao século XX. O constitucionalismo moderno possui ao longo da história três variantes bem definidas: a fase liberal, com o surgimento das primeiras Constituições escritas (EUA, em 1787, e França, em 1791), a fase social, com a consagração de direitos sociais em textos constitucionais (México, em 1917, e Alemanha, em 1919), e a fase presente, a fase do Estado Democrático de Direito, que, a partir da Constituição de Bohn (Alemanha, 1948),passa a conciliar Direito e Democracia e a materializar, pode-se dizer, o profético lema da Revolução Francesa, isto é: liberdade (direitos individuais), igualdade (direitos sociais) e fraternidade (direitos culturais e de meio-ambiente).
A Segunda-Guerra Mundial trouxe à tona um cenário de absoluta falência do Direito. O Direito foi tragado pela política e por um modo totalitário de fazer política. Dos escombros de guerra, então, surgiria esse novo paradigma, que é, ao mesmo tempo, resgate e construção. O Estado Democrático de Direito concilia Estado Democrático e Estado de Direito, mas não consiste apenas na reunião formal dos elementos desses dois tipos de Estado. Consiste, na verdade, na criação de um conceito novo.
Trata-se, consequentemente, o paradigma do Estado Democrático de Direito, de um conceito novo com novas e sensíveis diretrizes com forte carga transformadora – e extremamente salutares, diga-se, se olharmos com atenção àqueles opacos acontecimentos que acabaram por desencadear no advento da Segunda-Guerra Mundial. O Estado Democrático de Direito é o raiar de uma nova era, que surge justamente para resgatar todas as promessas não cumpridas da Modernidade – respeito aos direitos individuais, respeito aos direitos sociais de mínima subsistência, democracia etc.
O objetivo do Estado Democrático de Direito é o de fazer frente às exigências não cumpridas no passado. E o Estado democrático, para não cair em um “totalitarismo democrático”, tem que ser um Estado Democrático de Direito.É por isso, logo, que o artigo 1° da Constituição de 1988 afirma que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito. E não como mera promessa, mas proclamando-o, fundando-o efetiva e normativamente.
Já o conteúdo das Constituições, nesse caminho, passa a ser materialmente reivindicável. A Constituição de um Estado Democrático de Direito veicula consensos mínimos, que lidam com a proteção do regime democrático, da separação dos poderes, da dignidade humana, dos direitos fundamentais – individuais sociais e transindividuais. Trata-se de um controle da política pelo Direito que consagra pré-compromissos vinculantes, uma espécie de “risco no chão” com uma forte mensagem à política institucionalizada, qual seja: “é daqui para trás”. No Estado Democrático de Direito, a lei (Constituição) passa a ser uma forma privilegiada de instrumentalizar a ação do Estado na busca do programa apontado pelo texto constitucional.
A noção de Estado Democrático de Direito, ao fim e ao cabo, valendo-me dos ensinamentos de Lenio Streck, está “[…] indissociavelmente ligada à realização dos direitos fundamentais. É desse liame indissociável que exsurge aquilo que se pode denominar de plus normativo do Estado Democrático de Direito. Mais do que uma classificação de Estado ou de uma variante de sua evolução histórica, o Estado Democrático de Direito faz uma síntese das fases anteriores, agregando a construção das condições de possibilidades para suprir as lacunas das etapas anteriores” (STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 54).