Os quatrocentos e seis anos da morte de Shakespeare

O último sábado, 23 de abril, foi marcado pelos quatrocentos e seis anos da morte de William Shakespeare (1554-1616), o maior escritor de língua inglesa e um dos dramaturgos mais influentes de todos os tempos. A data coincide, aliás, com o dia de São Jorge, santo padroeiro da Inglaterra. O Bardo (“The Bard”) deixou aos pósteros um legado estimado de trinta e oito peças, cento e cinquenta e quatro sonetos, dois poemas longos e versos esparsos, com enredos ricos de conteúdo e mensagens inesquecíveis, que até hoje frutificam no teatro, na televisão, no cinema e na literatura em geral. Seu nome jamais seria esquecido. É possível, aliás, que, enquanto escrevemos esta módica coluna, alguém, em algum lugar do Mundo, esteja representando alguma peça dele. De nossa parte, como que a anunciar um pouco de luz na escuridão, as “Obras de Completas de William Shakespeare” repousam bem à nossa frente em uma estante enfeitada de escritório de advocacia. Falávamos sobre ele ontem. Falamos sobre ele hoje. E seguiremos amanhã e depois de amanhã. Shakespeare, pode-se dizer, foi um moderno ou, mais do que isso, um dos grandes fundadores do pensamento moderno ou mesmo da Modernidade.
A Modernidade designa a ruptura para com a Idade Média, que se deu, segundo os historiadores, com a queda de Constantinopla e a abertura comercial da Europa para o Oceano Atlântico. Cronologicamente costuma-se designar o ano de 1453 como o “marco-zero”. A Modernidade, no entanto, muito mais profunda do que isso, possui duplo sentido: ruptura e retomada. A ruptura se deu em relação aos valores medievais, sustentados que eram na crença em uma ordem universal regida pelo poder divino, independentemente dos desígnios humanos. Já a retomada ficou materializada a partir do resgate dos modelos da antiguidade greco-romana, com a valorização do ser humano em oposição aos ensinamentos teológicos do medievo. Tratou-se, sobretudo com o advento do Renascimento, de uma mudança de perspectiva que irradiaria efeitos nos séculos vindouros, de modo a consagrar o antropocentrismo com guia, assim como um novo culto às artes, à literatura e às ciências. A fonte de legitimidade no exercício do poder também sofreria mudanças. E é aíque a pena de Shakespeare adentrará, isto é, em um período de intensas disputas políticas e de questionamento das crenças e valores até então praticados.
Maquiavel, com “O Príncipe”, apresentou-nos verdadeiro tratado sobre a governança. Bodin, na obra “Seis Livros da República”, tratou da soberania, ainda que sem perquirir à fundo a sua fonte. Hobbes, em seu “Leviatã”, que fora escrito logo após a Guerra Civil inglesa, buscou justificar a existência do Estado e a figura do Monarca, sendo que eles seriam derivados de um contrato onde os indivíduos abdicariam de parte da sua liberdade em prol da obtenção de uma segurança mínima à sua subsistência, de modo a evitar o “estado de natureza”, a “lei do mais forte” ou mesmo a “guerra”. Shakespeare, a seu turno, embora rotineiramente ignoremos isto, tratou dos mesmos temas, isto é, de soberania, autoridade e indivíduo, questionando, inclusive, algumas práticas nossas, apresentando tensões muito semelhantes às dos tempos recentes – “como são tolos esses mortais!”, eis a crítica afirmação do personagem Puck em “Sonhos de uma Noite de Verão”.
Vários personagens de Shakespeare estão em busca de um sentido para a vida, o que os afasta da noção teológica de um Paraíso a nos esperar após a passagem – existe algum sentido para a vida ou ela nada mais é do que “um conto cheio de bulha e fúria, dito por um louco, significando coisa alguma?” (“Macbeth”); ou “O Homem é só isso?” (“Rei Lear”). Em outras peças sobrevém as tensões entre família e amor. Como pano de fundo, a tensão entre uma ordem estabelecida e os desejos individuais de autodeterminação – “O verdadeiro amor jamais teve curso tranquilo” (“Sonhos de uma Noite de Verão”); “Muito de ódio, mas mais de amor” (“Romeu e Julieta”); “Contra todas as leis da natureza” (“Otelo”). E noutras a questão da autoridade política salta aos olhos, como também em Macbeth – pode um Rei, como Duncan, pouco astuto que era, governar em prol de todos? Já o fato de Macbeth ser mais apto politicamente legitimaria o regicídio, verdadeiro golpe de Estado? Autoridade, ordem pré-estabelecida, transições culturais e de poder, indivíduo, limites à autoridade pública, aptidão política, sentido da vida, tudo está presente em Shakespeare. E é por essas e outras que a sua obra continua atual.

* Originalmente este conteúdo foi publicado no jornal impresso

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