Sobre as amarras de Ulisses (1)

Qual a relação entre Direito e Literatura? Muito se discute acerca das relações entre Direito e Política e entre Direito e Moral. Mas, e quanto ao Direito e a Literatura? Ambos são linguagem. O Direito garante a Literatura (liberdade de expressão do pensamento, de criação). Muitas questões jurídicas são abordadas pela Literatura, no mais. E a Literatura pode atribuir ao Direito um embelezamento que, vez ou outra, lhe falta, além de servir para explicar algumas questões complexas do universo das leis.

Shakespeare foi um dos maiores no desenvolvimento dessa interseção. A sua extensa obra tratou, em muito, de soberania, autoridade e indivíduo, além da legitimidade política e da importância de preservá-la, como em “Macbeth”, conforme já escrevemos aqui. Há, no entanto, vários outros exemplos, dos quais, diga-se, já nos utilizamos em alguns escritos. Assim o foi com Robert Bolt, em seu “O homem que não vendeu a sua alma” – a importância de respeitar o Direito, especialmente contra ímpetos salvacionistas. Com Robert Musil, em seu “O homem sem qualidades” – a importância das Luzes, notadamente em um Mundo crescentemente mecânico. Com John Milton, em seu “Paraíso Perdido” – “Por que terá o Criador proibido a eles os frutos? É crime saber? Sua felicidade terá base na ignorância?”. E com o Professor José Castro Neves, em seu “Como os advogados salvaram o Mundo”. Dentre outros.

A própria relação entre texto e sentido do texto ou entre significante e significado, tema dos mais caros ao Direito, considerada a correspondente Hermenêutica, é tratado pela Literatura. Volto à Literatura. Em “Alice através do espelho”, de Lewis Caroll, podemos presenciar, a partir de “Humpty Dumpty”, o modelo de sujeito que dá às palavras o sentido que quer – “Quando eu uso uma palavra, ela significa exatamente o que quero que ela signifique: nem mais, nem menos”. As palavras são minhas, faltou ele dizer. E, sendo minhas, a elas atribuo qualquer sentido.

É mais ou menos o que verificamos já há um tempo, na política e no Direito. Quanto ao Direito e a sua interpretação judicial, muito já escrevemos sobre. E voltaremos a isso. Falo aqui, por outro lado, sobre os discursos inflamados em defesa deslocada do conceito de soberania popular – “supremo é o povo”, assim como da insistente defesa do artigo 142 da CF como mecanismo legitimador da atuação das forças armadas como “moderador” da institucionalidade nacional.

Ocorre que a soberania popular, ao contrário daqueles que pensam ser possível fazer qualquer coisa a partir dela, é dúplice: se manifesta no exercício do poder constituinte originário e, depois, na escolha dos representantes e a partir de alguns mecanismos de participação direta, como o plebiscito, o referendo e a lei de iniciativa popular. Esta, a seu turno, é uma manifestação da soberania que não surge do vácuo, mas é garantida pelo fruto da primeira, ou seja, da Constituição. É uma soberania dentro da Constituição, não fora ou contra ela.

Já quanto ao artigo 142 da CF, também não é preciso muito esforço para ver que o texto jamais conferiu às forças armadas o papel de “moderação” ou de “fiador” da democracia constitucional brasileira. As razões são várias: as forças armadas estão submetidas ao poder civil; as forças armadas são reconhecidas pela Constituição, com funções delimitadas, não podendo agir contra ela, por si ou a mando de alguém; os poderes republicanos são três, apenas; a guarda mor da Constituição é do STF, por meio do controle de constitucionalidade. Fora daí, é diversionismo. Ou a tentativa de institucionalizar, pelo uso deturpado da linguagem jurídica, o golpe de Estado. Enfim…

E o que Ulisses, bem como as suas amarras, têm a ver com isso? Na “Odisseia”, Homero, um dos grandes autores gregos, narra a travessia de Ulisses e de sua tripulação de Troia a Ítaca, na Grécia. Tão logo finda a epopeica guerra entre gregos e troianos, Ulisses passaria por toda sorte de obstáculos em sua travessia de retorno. Um deles se daria na Ilha de Capri, a “terra das sereias”. Estes seres, segundo narra história, carregavam o poder de hipnotizar os homens através dos seus cantos, o que acabaria por conduzir as embarcações aos rochedos da morte, de onde dificilmente poderiam escapar. Ulisses sabia que não poderia resistir “ao canto das sereias”. E, com isso, pediria aos seus marujos que o amarrassem ao mastro do navio. Somente assim ele resistiria. É do “canto da sereia”, então, assim como das “amarras de Ulisses”, que falaremos, amiúde, nas próximas colunas, traçando paralelos com a realidade atual do Brasil, não apenas na política, mas no Direito. Segue…

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