Udenismo: o moralismo que subverte

A deposição de Getúlio, consumada em outubro de 1945, representou, paradoxalmente (houve um novo golpe de Estado, vez mais a partir das forças militares), a reabertura democrática no Brasil, dando ensejo, inclusive, à vinda de novas agremiações políticas, cuja existência havia sido cessada com o Estado Novo. As forças políticas, intelectuais, econômicas e trabalhadoras do país passariam, pois, a se aglutinar em torno das novas siglas, cada qual a seu modo, observados os seus interesses e visões de Mundo. Formaram-se novos partidos: a União Democrática Nacional (UDN), o Partido Social Democrático (PSD), o Partido Social Progressista (PSP), o Partido da Representação Popular (PRP), o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), e o Partido Comunista Brasileiro (PCB), já existente, agora legalizado.

Vieram, então, como bem registrou Nelson Saldanha em seu clássico “História das Ideias Políticas no Brasil,“as campanhas eleitorais e a safra dos faiseurs de phrases; e o mesmo povo, que assistira às arengas grandiloquentes dos áulicos do Estado Novo, com a mesma cara assistiria às denúncias contra este”. Dentre esses conflitos e partidos distintos, um deles parece representar um caso especial: a UDN. E não pelas suas virtudes, tampouco pelos grandes quadros que compuseram a sigla durante a história, como Afonso Arinos de Melo Franco, Aliomar Baleeiro, João Mangabeira, dentre outros. Mas, sim, por uma marca demasiado acentuada que notabilizou o partido: o voraz e contínuo apelo a um moralismo de goela, com feições desveladamente golpistas. Isto é: o moralismo udenista – ou o udenismo moralista – que tanta turbulência proporcionou à esfera pública brasileira. Uma dinâmica política digna de concretizar uma espécie de “sindicato do golpe” travestido de bandeira partidária, cujo mote mor foi o consolidar de “escândalos de laboratório” ao longo de sua curta vida (duas décadas).

Pinheiro Machado, Senador pelo Rio Grande do Sul, ficou conhecido na história como o “Fazedor de Presidentes”, tanto pelos seus aliados, quanto por seus adversários. A alcunha se deu pela grande capacidade de articulação política que ele possuía. Pois a UDN, especialmente a partir de uma figura muito controversa, poderia ser alcunhada como a “destruidora de Presidentes”. E a figura a que nos referimos é Carlos Frederico Lacerda, prócer do udenismo.

A prática discursiva da UDN, a partir desses pressupostos, sempre foi antissistema, mas com fino interesse: a partir de um palavreado inflamado o que se pretendia era atingir o mesmo poder que, ocupado por outros que não eles próprios, era detratado. Ninguém prestava a não ser os seus, como se não existisse vida inteligente e honesta ou séria fora dos respectivos círculos. Assim foi confabulada uma violenta cruzada moralista que perdurou viva até o golpe de 1964, atingindo vários Presidentes e políticos em geral, especialmente Getúlio Vargas, Juscelino Kubitscheck e João Goulart. E, fincado nesse cenário, a pretensão de estimular, a pretexto de combater a corrupção, rupturas institucionais. Um discurso moral e anticorrupção de… natureza corruptiva da higidez da institucionalidade brasileira. E Lacerda foi o mais destacado porta-voz do agir udenista.

Isso começou antes mesmo do retorno de Vargas à Presidência via eleições. E com a derrota de Eduardo Gomes para Eurico Gaspar Dutra na eleição de 1945. Ela, tal como indica Maria Victoria Benevides, “foi decisiva para influenciar a linha política do partido”. A frustração udenista pelas sucessivas derrotas eleitorais, então, seria compensada com o apelo à intervenção militar, o recurso sistemático à contestação dos resultados eleitorais, ou, na melhor das hipóteses, à adesão às práticas populistas (entre amargos e realistas diriam os udenistas, mais tarde, ao aderirem a essas novas práticas: “estamos fartos de derrotas gloriosas”). As portas do golpismo seriam escancaradas. E o discurso sustentáculo da investida seria a luta (abstrata) contra à corrupção e a necessária moralização das instituições, o quer que significasse. Como liga, a já batida simbiose entre política e militares. O resto é história. E a mensagem é: tenhamos sempre cuidado com tais discursos. Eles, travestidos de boas intenções, geralmente, sobretudo quando inflamados e abstratos, vêm para sustentar rupturas.

 

ORIGINALMENTE ESTE CONTEÚDO FOI PUBLICADO NO JORNAL IMPRESSO*

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