Vida digital e direitos fundamentais

A era contemporânea é a era da tecnologia. Vivemos numa “sociedade em rede”, como escreveram Jan Van Dijck e Manuel Castells. O fenômeno, como advertiram os mesmos autores, poderia ser conceituado como “revolução digital”. Ou, para outros, como “Indústria 4.0” ou “Quarta Revolução Industrial”, tal como descrito por Klaus Schwab. A questão é que o Mundo de hoje, marcado por uma hiperexposição às informações, se encontra na “nuvem” e, para além, já se fala em metaverso ou, grosso modo, em um mundo virtual paralelo que busca replicar a realidade concreta a partir de dispositivos digitais. O avanço, sem adentrar ao mérito de saber se tudo isso é proveitoso ou não, é evidente.
O constitucionalismo (ou os movimentos constitucionais, no dizer de Canotilho) surgiu tradicionalmente com o fim de limitar o poder do Estado na relação com os indivíduos. Sobrevieram, assim, os chamados direitos individuais, assentados justamente como trunfos do indivíduo contra o poder estatal. Pode-se lembrar aqui da afirmativa de Montesquieu, segundo a qual “quem tem poder tende a dele abusar”. Ou mesmo de John Adams, para quem “a cada poder concedido ao Estado deve corresponder (existir mesmo) um freio adequado”.
Agora, como manter esse casamento entre constitucionalismo e Estado, entre constitucionalismo e indivíduo, em uma época na qual convivemos com grandes plataformas digitais que desempenham cada vez mais um papel crítico na intersecção entre autoridade pública e ordem privada? O problema é: o avanço do poder tecnológico sem uma regulação eficaz como contrapeso.
E há exemplos, que são apenas exemplos dessa “desregulamentação institucionalizada”, fruto, quiçá, de uma inércia voluntária. O escândalo da Cambridge Analytica nas discussões do Brexit é um desses fatos mais recentes. Para além deles, que lidam diretamente com a “sociedade algorítmica” no interior de eleições das mais diversas, poderíamos também citar outro, a demonstrar o uso público desse manancial tecnológico contra cidadãos. Falo dos EUA pós 11 de setembro e da varredura que a Agência Nacional de Segurança (NSA) passou a fazer em face de cidadãos norte-americanos (nativos) sob o pretexto de combater o terrorismo. Teria sido ali a morte da privacidade?
Ocorre que na sociedade algorítmica as ameaças às democracias constitucionais não vêm mais exclusivamente do poder público. Elas vêm de entes privados que governam espaços formalmente privados, mas exercendo, na prática, e sem qualquer salvaguarda, funções tradicionalmente atribuídas ao poder público. E não poderemos ignorar, sob o prisma do constitucionalismo democrático, a necessidade de limitar tais ações, filtrando-as a tal ponto que, sob as vestes de facilidades à população em geral, não venham elas, se utilizando das respectivas plataformas, suprimir direitos e liberdades individuais – como a privacidade mesma.
Mais: é necessário, quiçá, digo eu, transportar, à tecnologia, valores republicanos, como que a fazer atribuir mais transparência à atividade dessas plataformas multinacionais, especialmente no que se refere aos algoritmos criados e mantidos por elas próprias, os mesmos que, naturalmente, a partir da inteligência humana, definem as características desses sistemas.
As democracias constitucionais poderiam injetar valores democráticos na tecnologia? A questão não seria apenas essa. A tecnologia é apenas um meio para mediar as relações de poder entre seres humanos. O cerne da questão é que por trás das tecnologias digitais, incluindo a inteligência artificial, existem os atores que definem os caracteres. Essas tecnologias – a afirmativa é basilar – não são autônomas ou neutras, mas tomam decisões sobre seres humanos com base em princípios que são principalmente moldados por outros seres humanos. E seres humanos possuem valores, visões de mundo, idiossincrasias, interesses.
Logo, precisamos pensar o desenvolvimento de novas formas de limitar abusos de poder em um espaço complexo que inclui governos, empresas e organizações da sociedade civil. Trata-se, pois bem, da necessidade de pensar limites de poder em uma sociedade em rede.

* Originalmente este conteúdo foi publicado no jornal impresso

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