Direito do inimigo

A “doutrina do inimigo” perpassa pelos tempos, pode-se dizer, desde a aurora da civilização. A história é recheada de inimigos forjados, muitos simplesmente porque o poder hegemônico assim os declarou. Na lição de Eugênio Zaffaroni, o poder punitivo sempre discriminou os seres humanos, possuindo uma seletividade intrínseca. Para o autor argentino, a individualização de um inimigo é uma construção tendencialmente estrutural do discurso legitimador do poder punitivo. E istopode ser situado já na antiguidade e identificado em Protágoras e Platão. Já a partir do século XV, o Estado tomou o lugar da vítima dos delitos e, com isso, neutralizou ou nulificou a verdadeira vítima. Seu primeiro inimigo foi satã, representado pelos hereges, bruxas, feiticeiros etc. Daí que, em nome da religião (religião, política e poder andaram de mãos dadas por muito tempo), os “inimigos” do sistema foram sistematicamente eliminados através dos tão conhecidos tribunais inquisitoriais. Com isso, muitos foram para a fogueira e, com a aclamação das vivandeiras da repressão e do punitivismo, sucumbiram em praça pública ante a tirania dos fundamentalistas. Desde então, dando aqui um salto histórico, não é penoso perceber que, quando determinado regramento ou sistema legal se transmuda numa espécie de fim em si mesmo, o surgimento de inimigos é inexorável. E essa perseguição, evidentemente, se dará aos atropelos.

Já em idos da década de 1980, o alemão Gunther Jakobs acabou cunhando o termo “Direito Penal do Inimigo”. A teoria sustenta a necessidade de um direito de exceção, isto é, um “Direito Penal do Cidadão” e um “Direito Penal do Inimigo”. O ponto crítico da teoria, portanto, é a existência de Direito: um para o cidadão comum e outro para o dito inimigo. Este, por sua vez, não é considerado como um titular de direitos e a relação que com ele se estabelece não tem nada de jurídica, partindo de um claro ideário de guerra (ou de estado de guerra).

Assim, calcado nessas premissas, pode-se dizer que o “Direito do inimigo” se posta como uma (condenável) proposta assentada em colunas bases, tais como: (I) relativização e/ou supressão de direitos e garantias; (II) antecipação da pena ou da punição; (III) desproporcionalidade das sanções; (IV) e criação de leis ou dispositivos legais severos, ou mesmo de decisões judicias que estabelecem situações fáticas como ilícitosex post facto, direcionados diretamente a quem se quer atingir (alegados terroristas, criminosos organizados, traficantes, “colarinhos-brancos” etc.). Nesse ínterim, o espaço para justiçamentos é largo, ao passo que a máxima segundo a qual os “fins justifica(ria)m os meios” seria a pedra filosofal do agir punitivo e de exceção, explícita ouveladamente.

E veladamente é ainda pior. Como assim, Guilherme? Respondo, caro (a) leitor (a). Pois isso se instala a partir de biombos, ou seja, com uma aura de legalidade que, no fim das contas, esconde um uso estratégico dos postos públicos para arrepiar a lei, a começar pela Lei das Leis, a Constituição Federal. E há exemplos, inclusive na história recente do Brasil. E eu falo da “Operação Lava-Jato”, a mesma que, a partir de uma concreta confusão entre acusação e juiz e de uma profunda quebra da densidade normativa dos direitos fundamentais processuais, mirou em diversas personalidades, justamente através de uma lógica de “nós e eles”, de “pureza contra a névoa”, de “amigo contra inimigo”. De Lula a Michel Temer e Eduardo Cunha, dos Odebrecht ao caseiro do sítio. É bom lembrar disso, para que não se repita.

A esse respeito, o próprio Cristiano Zanin, hoje indicado pela Presidência a uma cadeia no STF, teve um grande mérito, tudo ao ter introduzido no Brasil o conceito de “Lawfare”, considerado como tal aquele movimento materializador do uso estratégico do sistema judicial contra figuras que se pretende derrubar. E isso, no fim das contas, nada mais é que uma faceta de um “Direito do inimigo”.

Ocorre que o Direito, na perspectiva da consagração de garantias como limites de poder, vale para todos, indistintamente. Não contra todos. Tampouco contra alguém.

Por fim, mas não menos importante, para citar aqui dois grandes professores e amigos, Rodolfo Pereira e Marcelo Peregrino, e o Direito Eleitoral? Poderíamos falar de um “Direito Eleitoral do Inimigo”? A pensar…

ORIGINALMENTE ESTE CONTEÚDO FOI PUBLICADO NO JORNAL IMPRESSO*

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